Fogo na Favela do Pasmado ou como nascem as Marielles

Fogo na Favela do Pasmado ou como nascem as Marielles

No dia 24 de janeiro de 1964, um incêndio, sob a supervisão do Corpo dos Bombeiros, no Morro do Pasmado, em Botafogo, consumiu os mais de 500 domicílios onde viviam quase dois mil moradores. Por decisão de Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara, eles haviam sido removidos, dias antes, para a Vila Kennedy, um conjunto habitacional localizado nas cercanias de Bangu, construído com financiamento do governo norte-americano.

A ação atendia aos objetivos de Lacerda de “higienizar” a Zona Sul, para valorizar a região e favorecer a especulação imobiliária. Tanto isso é verdade que, em agosto de 1963 – quando o Programa de Erradicação de Favelas, da Secretaria de Serviços Sociais, ainda não havia oficializado a remoção da Favela do Pasmado –, o jornal Correio da Manhã já apresentava o arquiteto Sérgio Bernardes como autor do “projeto de urbanização do Morro do Pasmado”. Mais tarde se saberia que o projeto era o da construção do condomínio Casa Alta de Botafogo.

O periódico, aliás, comemorou a extinção da favela:

“Que em Bangu e redondezas surjam aglomerações decentes. Que venham abaixo, em cinzas, todas as favelas. Nem por isso a saudade é menor. Nem por isso as lágrimas deixarão de correr, numa tentativa infrutífera de apagar a fogueira. Uma fogueira que iluminou a noite de Botafogo no Morro do Pasmado.” (Correio da Manhã, 29/01/1964)

Justamente a Favela do Pasmado, uma das mais organizadas. Ela havia sido urbanizada em 1961 pelo Sistema Estadual de Política Habitacional (SEPHA), com ajuda da associação de moradores e com investimentos de órgãos públicos e da própria comunidade, por meio de mutirão.

Mas os tempos que se avizinhavam eram outros. Muito em breve, não haveria mais associações de moradores.

Como sempre acontece, a realidade da recém-inaugurada Vila Kennedy era bem diferente daquela pintada pelos políticos. Distante 40 km do Centro, o comércio e o transporte eram precários, e não havia trabalho por perto, nem acesso a serviços básicos, como clínicas de saúde. Naquela época, o Estado ainda não indenizava moradores removidos, e muitos não tinham como comprovar renda para financiar suas casas. Além disso, a mudança havia desintegrado a rede social de famílias que criavam os filhos juntas na comunidade do Pasmado. Mas isso já não era mais problema do Estado.

O troco

No ano seguinte, seria escolhido o sucessor de Carlos Lacerda para o Governo da Guanabara. O candidato da situação, tido como favorito, era Flexa Ribeiro, secretário de Educação e proprietário do Colégio Andrews, em Botafogo. Ele apostava numa boa votação, especialmente no bairro, onde, além da remoção da Favela do Pasmado, haviam sido feitas a canalização do fétido rio Berquó e a expansão da rua Mena Barreto.

No dia da votação, os antigos moradores da Favela do Pasmado tiveram que se deslocar até Botafogo para votarem, pois ainda não havia zona eleitoral no novo endereço. Os governistas esperavam votação maciça da Vila Kennedy em seu candidato, afinal, eles agora tinham direito à casa própria de alvenaria. A urna correspondente aos ex-moradores do Pasmado revelou, no entanto, míseros 12 votos para Flexa Ribeiro. E a surra eleitoral se repetiu em várias outras comunidades, como a do Morro do Salgueiro, em que Flexa Ribeiro obteve apenas 10% dos votos.

O oposicionista Negrão de Lima foi eleito com 582.026 votos, contra 442.363 votos para Flexa Ribeiro. Adeptos da candidatura de Flexa Ribeiro reclamaram da ingratidão dos eleitores. Os antigos moradores da Favela do Pasmado tinham a resposta pronta: “o povo não come cimento”.

Entre 1962 e 1974, cerca de 80 assentamentos urbanos, com 140 mil moradores, foram removidos das áreas mais nobres do Rio. Foi o maior deslocamento populacional da história da cidade, somente possível com a implantação da ditadura militar. Usando de truculência, incendiando favelas, assassinando líderes comunitários ou ameaçando favelados, o Estado atuou não para resolver as questões sociais, mas para esconder a miséria. As remoções não foram solução; ao contrário, agravaram a violência e a situação de risco social dos moradores, que perduram até os dias de hoje.

O fogo no morro alastrou / Entrou no barraco e nada deixou / As labaredas cresciam, cresciam / E o inferno de fogo a favela baixou / Que é da casa do João, brasa virou / João não tem mais lugar pra sonhar como sonhou / E lá no Pasmado, triste, abandonado / Nem aquela palmeira o fogo deixou*

* Versos da música Favela do Pasmado, de Edith Serra, gravada pelo coral Pequenos cantores da Guanabara, em 1965.

Antonio Augusto Brito