Desbunde em Bota

Desbunde em Bota

Há uma palavra curiosa em nossa língua: a bunda. E desbunde deriva dela. Oriunda de nossas heranças africanas, a palavra – que refere à região glútea – ganhou residência fixa e status no português do Brasil.

Caetano Veloso, com sua conhecida baianice, tentaria definir o termo, em Verdade Tropical:

esse nome que a contracultura ganhou entre nós – a bunda tornada ação com o prefixo des- a indicar antes soltura e desgoverno do que ausência – deixava o hip – quadril – dos hippies na condição de metáfora leve demais. Desbundar significava deixar-se levar pela bunda, tomando-se aqui como sinédoque para “corpo” a palavra afro-brasileira que designa essa parte avizinhada das funções excrementícias e do sexo (mas que não se confunde totalmente com aquelas nem com este), sendo uma porção exuberante de carne que, não obstante, guarda apolínea limpeza formal.

E, se desbundar era perder o autocontrole, as estribeiras, tirar o disfarce e causar impacto, houve um tempo em que toda uma geração – mesmo confundida com o que havia de loucura, alienação e vagabundagem – acabou optando pelo desbunde total.

Poetas desbundavam sem sequer saber o significado do termo, mas por imposição dos fervores da época.

No entanto, havia diferença radical entre um poeta marginal e um marginal poeta, uma vez que o desbunde era também ato político, visto enquanto resistência contracultural. E, a despeito de Dops, DOI-CODI e de Fleury, ser desbundado naquele tempo cheirava a algo próximo à felicidade.

Luiz Carlos Maciel, um dos teóricos do desbunde – recentemente morto –, confirma a tese e lembra detalhes do mais importante órgão de divulgação do desbunde à época:

(…) fui procurado por um jovem inglês, Mick Killingbeck (…) Estava conseguindo os direitos da revista Rolling Stone, o maior sucesso nos EUA no gênero, para editá-la aqui. Me escolheu (…) e então passei a ser editor da Rolling Stone no Brasil.

E, para fundar a editora,

Mick alugou uma casa velha na rua Visconde de Caravelas, em Botafogo, pertinho do primeiro apartamento dos Novos Baianos no Rio e do tradicional restaurante Aurora (…)

O gaúcho Caio Fernando Abreu, suspeitando da doença que mais tarde o mataria, revela em carta à mãe onde ficava sua comunidade de desbundados, aqui no Rio:

Perdi uns oito quilos em menos de dois meses, isso me preocupa um pouco (…) Há tanto a ser feito e ser vivido, e ser escrito que acho besta perder tempo. A casa onde moro é sensacional, tranquilíssima numa ruazinha em Botafogo, com mais três moças e um rapaz gaúcho boníssimos (…)

O bairro de Botafogo era, então, o ideal de consumo de vários adeptos desbundados da contracultura.

De fora do antológico 26 Poetas hoje, era no bairro que a esquecida Ledusha – outra clássica do desbunde – imaginava sua “Felicidade”.

nada como namorar
um poeta marginal
incendiado
uma casinha em botafogo
um quarto uma eletrola
uma cartola
(…)

eu você joão
girando na vitrola
sem parar.

Lucio Valentim