Samba na literatura

Samba na literatura

É carnaval!

A festa do tempo que tudo destrói e tudo transforma!

E, se letra de música é mesmo poesia, o samba – sendo música e letra – pertence também à categoria. Logo, olhemos sem pudores o samba-enredo como alguma poesia. Quer seja de boa, quer seja de má qualidade, há toda uma peripécia enovelada na ideia dessa espécie de música que remete e inspira à literatura.

Portanto, samba-enredo é poesia, sim, ainda que popular, no sentido semiletrado do termo – e beirando ao naïf –, assim como o gênero cordel.

Mas, a despeito disto, há agremiações que cantam literalmente – e com frequência – a Literatura, como há exatos cinquenta anos, no carnaval de 1968, fazia a São Clemente:

Imprensa, Águia de Haia Rui Barbosa Deixou muitas saudades Pelo seu valor

Exaltando a mais nobre personalidade literária do bairro, o samba-enredo não deixou de enfatizar também, na sequência, o nosso mais ilustre escritor:

Salve o magnífico Machado de Assis Figura principal da nossa literatura Exuberante como cronista Entretanto foi o melhor romancista Neste cenário multicor Relembramos grandes histórias Que através do tempo nos legou

Logo depois, no longínquo ano de 1971, a agremiação de Botafogo, com o tema da miscigenação racial, evocava – cheia de empolgação – o poeta romântico Castro Alves, em seu clássico Navio negreiro.

São Clemente vem cheia de glória e empolgação Apresentando como tema a história da miscigenação índios guerreiros cuja a terra habitavam não deixaram se escravizar por portugueses que aqui chegavam e que nossa terra queriam colonizar tiveram que trazer da África negros para trabalhar

Foi com Muita saúva, pouca saúde, os males do Brasil são, que é uma máxima do romance Macunaíma, do modernista Mário de Andrade, que o samba-enredo da São Clemente fez – com bom humor e ironia – a crítica momesca naqueles idos de 1986:

Desperta, Brasil, Desse coma entre vorazes tubarões Vindos por terra ou por mares, Poluindo nossos ares, explorando nosso chão, Impondo ordens em receitas estrangeiras, No acoito das saúvas brasileiras, De norte a sul, brasilinvest, por aí, E outros males como o fmi

Por fim, cedendo lugar ao bom humor – e travestindo uma vez mais a máscara da brincadeira burlesca –, a revolta seria a tônica da agremiação outrora formada por garotos pobres do bairro de Botafogo, que retornava à temática do abandono, naquele carnaval de 1987:

Não teve sorte Seu berço não foi de ouro, Seu pai não teve tesouro É triste sua vida a vagar -seu moço, dê-me um trocado! Eu quero comer um pão! Sou menor abandonado Neste mundo de ilusão

Com estes versos, o enredo de Capitães do Asfalto parafraseava – de forma intensa, perfeita e triste – o clássico de Jorge Amado, Capitães da Areia.

Lucio Valentim