Samba do Ernesto
Há duas espécies de generais: os chamados linhas-duras e os intelectuais. Ambos passaram por escolas superiores, mas enquanto alguns vivem em gabinetes, articulando planos e conspirando golpes, outros aspiram simplesmente o cheiro de obuses, tropas e cavalos.
De qualquer sorte, quer seja linha-dura, quer seja intelectual, é tudo general. E ponto. Há os de duas, três, quatro e cinco estrelas. E isso, sim, os distingue hierarquicamente perante seus subordinados. Dos que compuseram a nossa ditadura, apenas os dois primeiros ostentavam as tais cinco estrelas.
Geisel, por exemplo, pertencia a um seleto grupo chamado “Sorbonne”. Portanto, da ala dos intelectuais. Ainda assim, o radicalismo do regime ecoou em suas mãos. Numa prova de que, linha-dura ou não, ditador é ditador.
Penúltimo mandatário militar, Ernesto Geisel fizera história. E, claro, parte dela passada em Botafogo:
Ingressa, junto com seu irmão, Orlando, na Escola de Estado-Maior e divide com este e as respectivas famílias uma casa alugada em Botafogo. Na Escola de Estado-Maior, conhece o capitão Golbery do Couto e Silva (…)
Golbery passaria a ser seu braço direito na gerência dos anos de chumbo, herdados do general predecessor. Essa era a farsa: por ser do grupo dos intelectuais, associou-se a gestão de Ernesto ao processo de “abertura política”. Como se, no meio de facínoras, existissem os bonzinhos e os maus:
Quando entrou o Geisel, o problema dele era o seguinte: ‘o que é que vão dizer de mim se eu fizer um governo pior que o do Médici?’. Ele tinha sempre que dizer que o carrasco era o Médici. Mas Médici nunca fechou o Congresso, nunca cassou deputado, coisa que o Geisel fez à vontade.
Tudo feito, como sempre, para confundir a opinião pública.
Por ter cumprido à risca a cartilha do golpe – torturas, atentados a bomba, mortes, cassações – Ernesto receberia, em vida, lautas benesses do Estado. Em Dossiê Brasília: os segredos dos presidentes, o jornalista Geneton Moraes Neto nos requenta essa história:
(…) em companhia do cinegrafista, fico de plantão, numa manhã de 1991, na entrada do estacionamento do prédio em que o general dava expediente como presidente da Norquisa, empresa da área de química fina, na praia de Botafogo, no Rio (…)
Sim. Ernesto agora manipulava interesses petroquímicos nacionais, mas não sem antes indicar seu sucessor, o cavalariço. Aquele que um dia, em pleno poder, dissera – ipsis litteris – preferir cavalos ao povo.
O general das cavalgaduras era linha-dura, mas sua missão era a transição política – ainda que mediante conluios inimagináveis. E a mão de Ernesto estaria lá também, na sucessão da sucessão.
Adivinha, então, qual o palco da conspiração que apontaria o primeiro civil – após quase duas décadas e meia – à presidência e o mataria antes do discurso de posse?:
Tancredo chegou à praia de Botafogo, na zona sul do Rio, para visitar a sede da Norquisa. A empresa petroquímica era o local das reuniões (…)
Não revelarei aqui o que, naquela ocasião – dentre um rol de nomes feios –, Ernesto tartamudeara sobre Tancredo. Segredíssimo de Estado.
Porém, de lá pra cá, todos sabemos no que deu essa República.