Uma história, muitos crimes
O jornalista Nestor Moreira não era famoso, mas sua morte causou comoção e acabou sendo usada para atacar o então presidente da República Getúlio Vargas no fatídico ano de 1954. E olha que ele nem escrevia sobre política! Era apenas um repórter policial em fim de carreira, que brigava com a gramática, tinha vocabulário limitado, mas, em compensação, não lhe faltavam faro e disposição para chafurdar no submundo do crime atrás de um furo de reportagem. Seu maior feito foi virar nome de avenida em Botafogo: a que liga a Avenida Pasteur ao início do Aterro do Flamengo.
Nestor Moreira tinha 45 anos – 23 deles como jornalista –, trabalhava no antigo jornal A Noite e buscava pistas sobre o assassino da francesa Renée Aboab, encontrada morta, nua, em seu apartamento em Copacabana. Esperto, estava sempre muitos passos à frente da polícia na investigação do caso, o que lhe dava munição para criticar o trabalho dela. E foi pelas mãos da polícia que ele morreu em maio de 1954, dias depois de ser barbaramente espancado numa delegacia.
Na noite do dia 11 de maio, ao sair da boate Drink, em Copacabana, o repórter se desentendeu com o taxista Hermenegildo Viseu sobre o valor da corrida – mesmo tendo pedido que o taxista o esperasse na porta –, e os dois foram parar na delegacia. Lá foram recebidos por Paulo Ribeiro Peixoto, ex-guarda-costas do governador Carlos Lacerda. Além de policial, Peixoto dava uma de leão de chácara, nas horas vagas, em boates do bairro. Violento, ele era apelidado de “Coice de Mula”.
O jornalista Ruy Castro, em seu livro “A noite do meu bem – a história e as histórias do samba-canção”, narrou os acontecimentos daquela noite:
“Peixoto reconheceu Nestor como o repórter que os vinha fustigando pelo ‘crime da francesa’. Segundo as testemunhas – o taxista Vizeu, o comissário Gilberto Siqueira Alves, dois guardas-civis e os presos de cujas celas podiam ver o imbróglio –, o policial agrediu Nestor a golpes de cassetete, chutes e socos. Nestor foi esmurrado de todo jeito, principalmente nos rins, sempre a descoberto enquanto ele tentava proteger o rosto. Atirado ao chão, levou pontapés aplicados por botinas de bico duro e que o fizeram rolar escada abaixo. Enquanto apanhava, Nestor provocava o policial: ‘Pode bater, mas amanhã você está fora da polícia!’. Peixoto só parou quando se cansou. Em péssimo estado, Nestor foi libertado e conduzido para sua casa, onde sua mulher o levou para o Hospital Miguel Couto.”
Mas como foi que a morte de Nestor Moreira acabou sendo usada como pretexto para atacar Getúlio? Ora, quem conhece a política brasileira sabe que não é preciso muito para derrubar um presidente. Qualquer pedalada serve.
Um corvo no cemitério
A agonia do jornalista lutando pela vida no hospital durou 11 dias e serviu para jogar mais lenha na fogueira da política nacional. O velório na Câmara Municipal e o cortejo fúnebre até o cemitério São João Batista, em Botafogo, atraíram cerca de 200 mil pessoas. Ladino, o governador Carlos Lacerda aproveitou para jogar para a plateia e botar a culpa no presidente, tentando atribuir a violência policial à herança da ditadura do Estado Novo imposta por Getúlio Vargas, entre 1937 e 1946.
Todo vestido de preto, Lacerda afetava tristeza e culpava o presidente, cena que causou asco a Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora, simpático a Getúlio. Roupa preta… cemitério… ave de mau agouro… E pronto! Assim surgiu o apelido de “O Corvo”. Samuel Wainer chegou ao jornal e pediu para o caricaturista Lan desenhar a tal ave para ilustrar a matéria e ridicularizar Lacerda. O apelido pegou e atormentou o político para o resto da vida.
A morte de Nestor foi instrumentalizada na campanha para depor Getúlio Vargas. Campanha que havia começado em fevereiro daquele ano, com o Memorial dos Coronéis, manifesto criticando o governo pelo sucateamento do Exército. A campanha pegava pesado. Quase diariamente, Lacerda atacava Getúlio em artigos no jornal Tribuna da Imprensa e discursos no rádio. Mas o ápice foi quando Lacerda sofreu um atentado, cuja execução foi atribuída ao pessoal da segurança do presidente. O governo, então, tornou-se insustentável. E foi assim que, isolado, Getúlio se matou no dia 24 de agosto de 1954.
Da vida para a história do bairro
O julgamento do assassino de Nestor Moreira aconteceu dois anos depois. Coice de Mula foi condenado a dez anos de prisão pelo espancamento e pela morte do jornalista.
Sem o faro do repórter, o caso da morte de Renée Aboab, que havia vindo morar no Rio em 1947 e trabalhava na Fox Film do Brasil, ficou sem solução. O assassino nunca foi encontrado. Após três anos de investigações, com muitos suspeitos e nenhum culpado, a polícia abandonou o caso. Nestor Moreira, afinal, tinha razão em criticar a incompetência da polícia. E, por isso, pagou com a vida. Mas entrou para a história de Botafogo.
Fontes:
“Minha razão de viver – memórias de um repórter”, de Samuel Wainer
“A noite do meu bem – a história e as histórias do samba-canção”, de Ruy Castro
“O crime que abalou a República: violência, conspiração e impunidade no crepúsculo da Era Vargas”, de Roberto Sander
Jornais: A Noite, Última Hora, Diário da Noite