O Pasquim
A história de Botafogo não cansa de nos surpreender. O bairro já foi sede do Pasquim, o mais bem sucedido veículo da impressa alternativa durante os anos da ditadura militar. O semanário de oposição e crítica de costumes fundado em 1969, funcionou, em 1970, no número 32 da rua Clarisse Índio do Brasil, em Botafogo. O regime militar vivia, então, seu momento mais cruento durante o Governo Médici. Uma bomba chegou a ser colocada na sede do jornal, supostamente por militares da extrema-direita, e, em novembro do mesmo ano, os principais colaboradores do jornal foram presos e ficaram detidos por dois meses na Vila Militar. Mas o Pasquim resistiu e sobreviveu à repressão, na base de muito humor e irreverência.
O semanário – ou hebdomadário, como preferiam seus editores – carioca foi lançado em 26 de junho de 1969, apenas seis meses após a publicação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que eliminou garantias constitucionais básicas. Seus fundadores – o cartunista Jaguar e os jornalistas Tarso de Castro e Sérgio Cabral – sabiam que havia espaço para uma revista de humor depois da morte de Sérgio Porto – o Stanislaw Ponte Preta, editor da revista A Carapuça – e do fim da revista Pif-Paf, de Millôr Fernandes.
Logo de cara, o Pasquim mostrou que era diferente e inovador. O slogan – ou frase editorial – na cabeça da primeira página dizia: “Aos amigos, tudo; aos inimigos, justiça”. Com total liberdade de criação, cada colaborador dava sua personalidade ao jornal. O provocador Tarso de Castro escreveu um artigo irreverente em que chamava quase todo mundo – de Carlos Drummond de Andrade a Vinicius de Moraes, dos colegas do Pasquim aos vários amigos e amigas – de bichas, e terminava com a frase “O único macho do mundo é o Nelson Rodrigues”. Por esse texto, ganhou, ele próprio, o apelido de “a bicha do Pasquim”, que ostentava com orgulho, assinando a divertida seção de cartas dos leitores, em que estes o xingavam e eram xingados de volta por ele.
O cartunista Jaguar, além de criar um dos símbolos mais conhecidos do Pasquim – o ratinho Sigmund ou Sig, seu alter-ego –, revolucionou a forma de apresentação de entrevistas, publicando-as sem copidesque, em formato de pergunta e resposta, mas incluindo comentários, risadas e até palavrões, ocultados por um asterisco.
Luiz Carlos Maciel – guru da contracultura, com sua coluna Underground –, Paulo Francis e Ivan Lessa ficavam com os textos mais robustos e faziam a abordagem internacional. A equipe inicial incluía, ainda, Claudius e Prósperi, editores gráficos; Millôr Fernandes; e os chargistas Fortuna, Miguel Paiva e Henfil.
Censura e repressão
A diversidade de linguagens e estilos do Pasquim confundiu, durante algum tempo, os responsáveis pela censura prévia durante a vigência do AI-5. O humor era o meio cifrado, utilizado para driblar a censura, pois só era entendido por iniciados. Como censurar aquilo que não se entende? Mas o Pasquim cresceu – sua tiragem saltou, em poucos meses, de 28 mil para 200 mil exemplares – e começou a incomodar.
Na madrugada de 12 de março de 1970, uma bomba foi colocada na sede do jornal, na casa de número 32 da rua Clarisse Índio do Brasil. Por sorte, não havia ninguém na redação naquela hora. E, por mais sorte ainda, o artefato não explodiu. Os responsáveis apertaram demais a ligação do estopim com a espoleta, e o fogo não chegou até a dinamite e a carga de TNT. Os investigadores afirmaram que aquela havia sido a maior bomba já encontrada. Caso explodisse, teria destruído a sede do Pasquim, matando o vigia e a esposa dele, além de provocar uma tragédia nos arredores.
A notícia sobre o atentado foi dada pelo próprio Pasquim, do seu jeito. Para ilustrar, uma foto da “patota” – Luiz Carlos Maciel, Paulo Francis, Jaguar, Fortuna, Tarso de Castro, Millôr Fernandes, Henfil, Ziraldo, Sérgio Cabral e Paulo Garcez – caracterizada com máscaras de caveiras e carregando uma caixa de uísque vazia.
“Damo-nos por vencidos, como diria um purista. Até agora ainda não sabemos quem colocou a bomba na Rua Clarisse Índio do Brasil (vocês já repararam no nativismo de nosso endereço?) na madrugada de quinta-feira, 12 de março (felizmente, como sempre, estávamos no bar). Mas já sabemos, naturalmente, a direção e de onde veio o ataque. E sabemos, sobretudo, o que pretendem os agressores. Assim, para evitar qualquer futuro atentado, damos, acima, aquilo que tão ardentemente desejam os terroristas: ver nossas caveiras”.
A “gripe do Pasquim” e a solidariedade
No final de outubro, Jaguar publicou uma fotomontagem do quadro de Pedro Américo “O Grito do Ipiranga”, também conhecido como “Independência ou Morte”, em que o cartunista acrescentou um balão à imagem de D. Pedro I com a frase “Eu quero mocotó”, de uma música de Jorge Benjor. Bastou para que, dali a poucos dias, nove colaboradores do Pasquim – Paulo Francis, Ivan Lessa, Ziraldo, Luiz Carlos Maciel, Paulo Garcez, Flávio Rangel, Sérgio Cabral, Tarso de Castro e Fortuna – fossem presos e ficassem na Vila Militar por tempo indeterminado. Jaguar se entregou dias depois, juntando-se ao grupo. Ele disse que foi o melhor período da vida dele. “Bebia o dia inteiro; subornava guardas para comprarem cachaça; e aproveitei para ler ‘Guerra e Paz’, aquele calhamaço do Tolstoi que você só lê na prisão”.
Apenas Millôr e Henfil haviam escapado da prisão. Assim que soube da prisão da redação do Pasquim, o compositor e cantor Chico Buarque foi bater na sede da empresa, em Botafogo, se oferecendo para colaborar, enquanto os colegas estivessem presos. O cineasta Glauber Rocha também se apresentou, assim como muitos outros jornalistas, escritores e ilustradores.
Sob censura, o jornal tratava a ausência dos jornalistas como uma gripe, em texto repleto de meias palavras para bom entendedor:
“(…) Uma verdadeira reação em cadeia. Por isso, O PASQUIM passado saiu desfalcado, tão endefluxado. Esperávamos já nesta edição contar com a equipe habitual (a patota), pois todos os médicos, tomando o pulso e a temperatura geral, afirmavam que nenhum deles apresentava a menor gravidade, e não eram sequer contagiosos. Bastaria, para um, dois ou três dias de recolhimento, para outros apenas algumas horas e estariam prontos para suas exaustivas atividades habituais, da praia ao bar da esquina e do bar da esquina à praia, com paradas ocasionais nas máquinas de escrever. Mas, como os dias passaram e os nossos companheiros não receberam alta (nem baixa) resolvemos apelar para as colaborações de alguns dos nossos mais acirrados amigos (amigo também pode ser inimigo?). Antes, porém, que tivéssemos erguido um dedo, discado um só telefonema, emitido um único grito de socorro, as portas da Clarisse Índio do Brasil eram invadidas por uma verdadeira multidão de escritores, jornalistas, desenhistas, cantores, desportistas, publicistas, banqueiros e bancários, que vinham se oferecendo para trabalhar” (…)
A frase-legenda enigmática da edição seguinte dizia que “uma coisa é certa: lá dentro deve estar muito mais engraçado do que aqui fora”. Enquanto a maior parte da redação estava “gripada”, Henfil ficou responsável por imitar o traço de Jaguar, enquanto Miguel Paiva imitava o de Ziraldo. O jornal continuou a ser publicado apesar dos pesares. A equipe do Pasquim só foi solta no início de 1971. Em dificuldades – muitos anunciantes haviam abandonado o jornal –, o Pasquim resistiu por mais alguns anos, participando das campanhas da anistia, das “Diretas Já” e do “Fora, Collor”, encerrando as atividades em 1991.
A contribuição do Pasquim para a renovação da linguagem do jornalismo e das artes gráficas é inestimável, assim como sua função de espaço cultural da resistência democrática numa página infeliz da nossa história. Aqui, em Botafogo, a resistência se deu com as tintas do humor irreverente e da inteligência.