Solar da Fossa

Solar da Fossa

O Solar da Fossa – pensão de 85 quartos que ficava em um casarão da antiga fazenda do vigário geral, na rua Lauro Müller 116, em Botafogo – hospedou, entre as décadas de 1960 e 1970, alguns dos maiores talentos da música popular brasileira e das artes em geral de todos os tempos. Antes de ser demolido em 1972 para dar lugar ao shopping Rio Sul, o solar abrigou músicos como Caetano Veloso, Gal Costa, Paulinho da Viola, Zé Kéti, Sueli Costa e Tim Maia; os poetas Paulo Leminski e Abel Silva; os atores Cláudio Marzo, Beth Faria, Antônio Pitanga e Ítala Nandi, o jornalista Ruy Castro e o diretor teatral Aderbal Freire Filho, tornando-se, em plena ditadura, o maior polo informal de produção cultural no país.

A pensão foi inaugurada em 1964, quando o casarão seiscentista foi alugado em nome de Jurema Romão Cavalcanti por Frederico Mello, arrendatário do terreno da Santa Casa de Misericórdia, que incluía três outros imóveis e ia até a igreja Santa Teresinha, próxima ao Túnel Novo. O casarão de dois pavimentos tinha paredes pintadas de rosa-claro e janelas, de azul. Na entrada, havia uma passagem estreita, que dava em um pátio, e uma escada que levava ao pórtico do prédio. Na parte interna do casarão, havia um amplo jardim com gramado e algumas árvores. Dona Jurema passou a oferecer para aluguel – sem fiador, mas com pagamento antecipado – apartamentos de dois quartos, um quarto e até quitinetes. O módico preço do aluguel incluía troca de roupas de cama e lavagem de roupas pessoais feita por lavadeiras do Morro da Babilônia, próximo à pensão que dona Jurema batizou de Santa Teresinha.

O primeiro hóspede do meio artístico a chegar, em 1966, foi Kleber Santos, diretor do espetáculo Rosa de Ouro, de Hermínio Bello de Carvalho, em cartaz naquele ano, no Teatro Jovem, em Botafogo. Com ele, veio a atriz Maria Gladys, do elenco fixo do teatro, que, na época, namorava Roberto Carlos, o rei da jovem guarda. Paulinho da Viola, que também fazia parte do Rosa de Ouro, passou a dividir um quarto na pensão com o amigo de faculdade Abel Silva, poeta que se tornaria compositor de vários sucessos da MPB. Maria Gladys trouxe Caetano Veloso, que trouxe os amigos baianos e artistas gráficos Rogério e Roberto Duarte, o cantor e compositor Tom Zé e a cantora Maria da Graça ou Gracinha – mais tarde, Gal Costa. Naquela filial baiana do solar, orbitavam ainda, Gilberto Gil, o poeta José Carlos Capinam, a cantora Nana Caymmi e o cineasta Glauber Rocha.

Pode-se dizer que o solar foi o berço da Tropicália, movimento musical lançado em 1968 com o disco “Tropicália ou Panis et Circencis”. A capa do disco mostra vários moradores do solar e alguns visitantes habituais, como o poeta Torquato Neto e a cantora Nara Leão. O conceito e a criação da capa foram de Rogério Duarte, e a faixa-título “Panis et circenses”, com letra de Caetano, fazia referência ao próprio solar:

“Mandei plantar folhas de sonhos no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar..”

Enquanto Caetano e outros baianos seguiam pela vereda tropical, Paulinho da Viola compunha, no solar, “Sinal fechado”, um de seus maiores clássicos. Outro morador – Antonio José Waghabi Filho, mais conhecido como Magro, do conjunto vocal MPB4 –, escrevia o arranjo para a música “Roda Viva”, de Chico Buarque. Em outro canto do solar, Sá e Guarabira ensaiavam o início de uma parceria, que incluía, ainda, o amigo Zé Rodrix.

As condições da pensão de dona Jurema eram atraentes para artistas jovens e duros, vindos de outras cidades; para jovens cansados de morar com os pais; e para desquitados sem muito dinheiro, precisando refazer a vida. Foi o caso do carnavalesco Fernando Pamplona, que se mudou para a pensão em 1967, depois de uma separação. Deprimido, Pamplona ainda conseguiu rir da própria desgraça, batizando a pensão de Solar da Fossa. A fossa do carnavalesco durou pouco – foi visto animado no solar, com o amigo Arlindo Rodrigues, bolando o desfile do Salgueiro –, mas o nome ficou.

A era dos festivais

Entre 1966 e 1969, os festivais de música eram muito populares e serviam de plataforma de lançamento de novos talentos. Na final do festival de Música Popular Brasileira de 1967, os quatro primeiros colocados eram moradores ou frequentadores do Solar da Fossa: Capinam e Edu Lobo ficaram em primeiro lugar com “Ponteio”; Gilberto Gil, em segundo lugar com “Domingo no parque”; Chico Buarque, com o MPB-4, levou o terceiro lugar com “Roda Viva”; e Caetano Veloso, com “Alegria, alegria”, terminou na quarta colocação.

Se a fama do Solar da Fossa ganhava o país, a consagração de seus artistas nos festivais da canção fez do casarão estágio obrigatório para iniciantes e veteranos. Todo mundo queria fazer parte daquele espaço democrático de experimentação artística e – por que não dizer? – lisérgica. Lá era comum esbarrar nos corredores, em diferentes épocas, com gente como Milton Nascimento, Jards Macalé, Ismael Silva, o coreógrafo Lennie Dale, Hugo Carvana, Marieta Severo, José Wilker; o artista plástico Hélio Oiticica, Toquinho, Zé Celso Martinez Corrêa, Sidney Miller, David Tygel, Ricardo Vilas, Ronaldo Bastos, Maurício Maestro e os irmãos Jorge e Wally Salomão.

Eclipse

O ano de 1968 marcou o início de um período de radicalização política. O Festival da Canção, da TV Globo, foi o festival das canções de protesto: Caetano gritou “É proibido proibir”; Chico Buarque e Antonio Carlos Jobim inscreveram a melancólica “Sabiá”, que remetia ao poema “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias; Sérgio Ricardo atacou de “Canção do amor armado”; Gilberto Gil trouxe “Questão de ordem”; e Geraldo Vandré defendeu sua antológica “Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando)”.

Em dezembro do mesmo ano, o governo do general Costa e Silva editou o Ato Institucional nº 5, que eliminou garantias constitucionais, como o habeas corpus, e permitiu ao Executivo fechar o Congresso, cassar mandatos de parlamentares, intervir nos governos estaduais e municipais, e censurar a imprensa.

A cultura foi seriamente abalada pelo AI-5. Caetano e Gil foram presos e, meses mais tarde, buscaram o caminho do exílio, a exemplo de Chico Buarque, Geraldo Vandré e tantos outros. O Solar da Fossa parecia, definitivamente, contaminado pelo baixo astral e entrou em decadência. Oficiais de justiça apareceram com uma ordem de despejo. Após alguma resistência, em 1971, o solar foi, finalmente, desocupado e, no ano seguinte, demolido para dar lugar ao shopping center, inaugurado em 1980.

Fossem outros tempos, o casarão teria sido preservado por sua importância histórica e cultural. Mas eram tempos do governo Médici, em que a história e a cultura não tinham vez.

Fonte de pesquisa: “Solar da fossa”, livro de Toninho Vaz

Antonio Augusto Brito