O cego mascando chicles

O cego mascando chicles

Houve um tempo em que a praxe era ambientar a ficção em lugares distantes e imaginários, sempre distintos daqueles vividos e experimentados pelo próprio autor – como é o caso do Hamlet e do Otelo, de Shakespeare.

Porém, o mais comum, contemporaneamente, é o autor, em suas poesias ou prosas, falar de sua cidade, aldeia, bairro ou país. Enfim, do próprio umbigo – ou nariz.

Mas, Sérgio Sant’Anna, por exemplo – com quem eu tive o prazer de topar algumas vezes, em nosso cooper diário pelo bairro das Laranjeiras –, disse um dia que, na fase em que vivia tremendamente assediado pela publicação de seu reverenciadíssimo Senhorita Simpson, teve de cortar dobrados para rechaçar algumas complicações oriundas da fama:

“Eu até fui acusado de ninfeteiro por uma professora universitária. Saiu no Jornal do Brasil.”

E, quando da publicação de Um crime delicado (1997), declarou:

…vejam a preocupação com a localização geográfica. A tendência era eu botar meu autor/diretor num edifício igual ao meu, em Laranjeiras, mas pensei: não, vou botá-lo em Botafogo, pois se alguém do meu prédio ler, se for um vizinho de andar, a mulher do cara e tal, e a cabeça do sujeito pode começar a viajar no ciúme, um ciúme de Otelo… de repente levo um tiro. Então coloquei a história em Botafogo.

Um crime delicado conta as perambulações do diretor de teatro Antonio Martins pelo bairro e, nesta ficção, há pelo menos dois paralelos literários, duas trampas, para além da própria forma narrativa: uma com o Machado de Dom Casmurro, devido à pendenga acusativa em relação à sua Capitu – Martins e sua Inês encaixam-se bem nesse perfil. E, outra com a ‘epifania’ do conto de Clarice Lispector, Amor, onde a magia narrativa se dá no momento único em que a personagem Ana segue de bonde pela Rua do Catete rumo a Botafogo e vê o tal cego mascando chicletes num ponto qualquer da São Clemente. O cego de Clarice e a adúltera de Machado mesclam-se no delicado crime do cinquentão carioca que se envolve com mocinha cheia de mistérios – e manca – pelas ruas de Botafogo.

Lucio Valentim