Nelson bota(va)fogo

Nelson bota(va)fogo

Nelson Rodrigues era mesmo um gozador iconoclasta. E, quando não estava prostituindo adolescentes, propondo incestos, tramando assassinatos e bizarrices de toda ordem – sempre expondo a face trágica da família pequeno-burguesa brasileira –, Nelson era um fanfarrão, que fazia rir com sua verve ácida e cômica das crônicas diárias.

Mais cultuado do que conhecido pelas tragédias, romances ou pelas crônicas esportivas, NR, em O óbvio ululante, demonstra que é também exímio e original cronista do cotidiano, mediante a manipulação coloquial do idioma, tanto em expressões como na invenção de personagens.

É bem verdade: a literatura brasileira está repleta de personagens e palavras raras, mas a despeito de um Rui Barbosa ou um Guimarães Rosa, ululante – que se saiba – será sempre vocábulo exclusivo do léxico rodrigueano.

Aliás, parecia óbvio que, ao fazer desse conjunto de crônicas publicadas na imprensa suas “confissões”, NR não pouparia seus desafetos da memória, destilando veneno em altas figuras políticas e literárias do tempo.

Único autor a destituir em texto Guimarães Rosa – “Talvez todo o Guimarães Rosa fosse uma inútil obra imortal” –, O óbvio ululante inicia fazendo piada com um brutal assassinato ocorrido nos seus tempos de infância:

(sou um fascinado pelas datas dos velhos jornais e dos velhos túmulos). A manchete rasga as suas oito colunas: — ASSASSINADO O GENERAL PINHEIRO MACHADO!

Ao bater estas notas, sinto o abismo entre as manchetes: — a de Pinheiro Machado era um berro gráfico, um uivo impresso;

E chacota das vaidades políticas do morto, como se por esse “crime” merecesse mesmo o fatídico “castigo”:

Estou vendo Pinheiro Machado, de fraque, chegando (…) Lá está o seu lindo perfil de moeda. Era um voluptuoso, um lúbrico do Poder. Sua conquista política era um jogo amoroso. O olho ficava mais doce, lascivo, translúcido. E assim caminha o general, muito olhado. Claro que todos se voltavam para ver o homem (…) A punhalada amadurecia no coração do povo. (..) Pinheiro soluça: — “Mataste-me, canalha!”. Mas Osvaldo Paixão, contemporâneo do episódio, orador de vários comícios ferocíssimos, retifica. Segundo ele, as últimas palavras de Pinheiro foram estas: — “Apunhalaste-me, canalha!”.

Nelson, após desdenhar da originalidade da frase lapidar: Quero crer que ele tenha dito apenas: “Canalha”, termina o episódio num riso cínico: E ninguém percebeu que, com Pinheiro Machado, morria também o fraque.

Menino do Rio Belle Époque, Nélson faria graça nestas crônicas com a grave gafe oficial cometida por Pinheiro Machado – a quem odiava por pertencer à bancada da bala –, em debate justo com outro personagem ilustre do bairro de Botafogo:

Era no velho Senado. Pinheiro Machado está na tribuna. Fala, fala com a nobre insolência gaúcha. Mais adiante está Rui Barbosa, “o maior dos brasileiros vivos”. De repente Pinheiro Machado diz: — “Se eu me manter”. Rui cortou, com triunfante crueldade: — “Decerto Vossa Excelência quer dizer ‘mantiver’”. A lambada doeu na carne e no brio do caudilho. Vacila ou nem isso; deu a resposta fulminante: — “Vossa Excelência pode me corrigir, e é bom que o faça. Pois, enquanto Vossa Excelência aprendia a falar certo e bonito, eu matava e morria na Guerra do Paraguai”.

Tudo isso apenas na primeira “confissão” de O óbvio ululante.

E corria o longo ano de 1968.

Lucio Valentim