Herói sem causa

Herói sem causa

A rua Capitão Salomão – localizada entre as ruas Voluntários da Pátria e Visconde de Silva, em Botafogo – tem esse nome em homenagem ao sergipano José Agostinho Salomão da Rocha, militar que morreu em combate em 1897, durante a terceira expedição do Exército na infame Guerra de Canudos. Diante da derrota iminente, Salomão e meia dúzia de seus comandados da artilharia pagaram com suas vidas para retardarem o avanço de combatentes liderados por Antônio Conselheiro e, assim, permitirem a retirada da tropa. O ato de bravura do militar foi citado na famosa obra “Os sertões”, de Euclides da Cunha.

Canudos

Arraial de Canudos (1897)

Não há nada que assuste mais os poderosos do que povo organizado. E, naquele fim de século XIX, o Arraial de Canudos, vilarejo baiano distante mais de 400 quilômetros da capital Salvador, havia se tornado motivo de preocupação. Situado numa região do Nordeste caracterizada pelas secas frequentes, por latifúndios improdutivos e pelo desemprego, Canudos tinha se transformado num polo de atração de multidões de desvalidos vindos de todo o sertão. Sob a liderança político-religiosa de Antônio Conselheiro, o vilarejo fornecia sustento para seus 25 mil habitantes: camponeses, jagunços desempregados, escravos libertos e indígenas.

Canudos prosperava, e isso irritava os chefes locais. Fazendeiros, com apoio da igreja e dos políticos, iniciaram, então, uma campanha de desinformação, espalhando boatos – que foram amplificados pelos jornais sensacionalistas do Rio de Janeiro – de que Canudos se armava para atacar cidades vizinhas e partir em direção à capital para derrubar o governo republicano e restaurar a Monarquia.

Um desses boatos levou à primeira expedição a Canudos. No dia 24 de novembro de 1896, o destacamento policial formado por 100 praças causou pesadas baixas entre os defensores do vilarejo, mas se retirou após cinco horas de combates. No dia 18 de janeiro de 1897, uma nova expedição, dessa vez com 250 homens comandados pelo major Febrôncio de Brito. Eles foram atacados e repelidos, resultando em 100 soldados mortos e muitas armas de fogo capturadas pelos homens de Antônio Conselheiro.

A Expedição Moreira César

Àquela altura, humilhado e desmoralizado, o Governo Federal havia convocado o coronel Antônio Moreira César para comandar uma terceira expedição a Canudos, então com uma tropa regular do Exército formada por 1.300 homens, seis canhões Krupp, cinco médicos, dois engenheiros militares, ambulâncias e um comboio cargueiro com munições. Moreira César era conhecido pela alcunha de Corta Cabeças por ter mandado degolar, sem julgamento, dezenas de revoltosos da Revolução Federalista (1893-1895). Em sua folha corrida, estava também o assassinato de um jornalista, seu desafeto, com facadas pelas costas. Ficou claro que se tratava de uma expedição de vingança.

Cada um cuide de si

Na manhã do dia 2 de março de 1897, após bombardear o vilarejo, o coronel Moreira César ordenou um ataque frontal, em marcha acelerada. “Vamos almoçar em Canudos”, teria dito, com toda a arrogância que costuma anteceder as grandes derrotas. Foram recebidos por fogo intenso vindo de todas as direções. Naquela guerra de guerrilhas, a cavalaria era inútil em ruas de menos de dois metros de largura, assim como de nada mais serviam os canhões, que, se fossem disparados, atingiriam a própria tropa. No final daquela tarde, o Exército havia perdido mais de 500 homens, entre eles seu comandante, atingido por dois tiros mortais. O coronel Tamarindo, seu substituto imediato, foi incapaz de esboçar qualquer reação. Apático, disse aos oficiais que aguardavam suas ordens: “é tempo de Murici, cada um cuide de si”. Sem comando, a tropa se desmantelou, e os cerca de 800 soldados restantes partiram em retirada, se é que se pode chamar assim uma fuga desabalada.

A artilharia do Capitão Salomão

Capitão Salomão

Em meio à debandada geral, em que armas e até os feridos foram largados pelo caminho, apenas a artilharia do capitão Salomão – com meia dúzia de comandados e quatro canhões Krupp – reagia, retardando o avanço dos combatentes de Canudos que perseguiam a tropa em fuga. Euclides da Cunha, em sua obra “Os sertões”, narrou o episódio:

A dissolução da tropa parara no aço daqueles canhões cuja guarnição diminuta se destacava maravilhosamente impávida, galvanizada pela força moral de um valente. (…) O resto da expedição podia escapar-se a salvo. Aquela bateria libertava-a. De encontro aos quatro Krupps de Salomão da Rocha, como de encontro a uma represa, embatia e parava, adunava-se, avolumando, e recuava, e partia-se a onda rugidora dos jagunços. (…) A bateria afinal parou. Os canhões, emperrados, imobilizaram-se numa volta do caminho (…) Era o desfecho. O capitão Salomão tinha apenas em torno meia dúzia de combatentes leais. Convergiram-lhe em cima os golpes; e ele tombou, retalhado a foiçadas, junto dos canhões que não abandonara.

Uma quarta expedição, realizada entre agosto e setembro de 1897, cumpriria a vingança anunciada, pondo abaixo Canudos e aniquilando sua população, inclusive prisioneiros que haviam se rendido. Como herança desse genocídio, o termo “favela”, nome de um dos morros do entorno de Canudos, popularizou-se nas grandes cidades. E, por uma sina macabra, o Estado continua vendo a favela e o pobre como inimigos.

Morte do Capitão Salomão da Rocha defendendo uma peça de artilharia. Ilustração de Angelo Agostini para a revista Don Quixote (1897)

Antonio Augusto Brito