Botafogo épico
Ilustração de A origem do mênstruo, poema erótico de Bernardo Guimarães
Desde Platão, a poesia causa incômodos. Não à toa, na República idealizada pelo mais sábio discípulo de Sócrates, o Poeta não teria voz – nem vez.
Soube que um amigo professor poeta fora recentemente expulso de uma escola da elite-zona-sul carioca assim que os pais de seus alunos souberam, via internet, ser o professor poeta autor de lascivos poemas eróticos.
Como de sempre ignorante de tudo, a elite desconhece que em todo poeta que se preze – de Gil Vicente a Camões, de Baudelaire a Pessoa, de Drummond a Bukowski – a produção erótica, sem trocadilhos, abunda.
O autor do clássico A escrava Isaura, grande romancista que era, superou-se em poemas épicos de cunho mais que eróticos – pornográficos –, cujos títulos, O elixir do pajé e A origem do mênstruo, ambos de 1875, causaram espécie na elite letrada de então.
Mas, em contrapartida, toda a luxúria e a sensualidade épico-poéticas de Bernardo Guimarães se estenderiam, também, ao bairro que – a despeito de mineiro – o poeta sempre prezou:
Golfo sereno que no teu regaço
A fronte espelhas de escalvados serros,
E soluçando pelas curvas praias
Límpidas ondas preguiçoso estiras;
Vales sombrios de perene esmalte,
Que em caprichosos giros coleando
Vos escondeis nas dobras da montanha
Entre muralhas de empinadas rochas;
Lindas encostas, cômoros viçosos,
Que o rico manto de verdura e flores
Alardeais à luz de um céu formoso;
Na epopeia A baía de Botafogo o poeta se espraia em figuras de linguagem e imagens hiperbólicas para exaltar a beleza do lugar:
Por sobre vós os séculos passaram,
E um dia o nauta audaz transpondo os mares,
Do inculto Éden veio bater às portas,
E devassar recônditos mistérios
Que em vosso seio os fados ocultavam.
Como sabemos – e já alertara Cacaso –, o mar de mineiro é sempre mistério. Por isso, inspiradíssimo, o poeta, após vislumbrar eunucos negros a defender a entrada da enseada que canta,
Vede aquele rochedo, que isolado
Com temeroso vulto se levanta
Por sobre as águas; – atalaia eterna,
Que nos céus embebendo a fronte imóvel
Ampara as terras e vigia os mares.
Ei-lo campeia, qual o negro eunuco,
Ali postado, taciturno e quedo,
De harém vedado defendendo a entrada.
termina por decantar em versos, sob à luz da baía de Botafogo, sua esperança nessa gente bronzeada e nesse solo tropicais:
Deixai, que nestas veigas solitárias
Renasça a tolerância, e que algum dia
Novos costumes, leis, que se harmonizem
Aos ditames da eterna sapiência,
Da liberdade à sombra aqui floresçam…
E lá se vão mais de 150 anos.