Botafogo do caos surreal
I.
O Surrealismo fixou residência consistente em toda a cultura ocidental. Primeiramente manifestado na França de André Breton, o estilo passaria pela Alemanha de Max Ernst, pela Espanha de Salvador Dalí e de Luis Buñel para desembocar em Botafogo – de Vinicius, Murilo e Manoel.
A Balada das duas mocinhas de Botafogo, longo poema de Vinícius de Moraes – antigo morador do bairro, conforme sabemos – introduz uma visão tanto surreal quanto cruel das duas mocinhas pequeno-burguesas do título:
Eram duas menininhas
Filhas de boa família:
Uma chamada Marina
A outra chamada Marília.
Sendo o bairro de Botafogo destacado quase sempre em prosa e verso por sua exuberância natural e pelo centenário charme que circunda seus habitantes, neste poema aparentemente lírico-amoroso, ao contrário do que sugere o início, as mocinhas se prostituem até a morte em trânsito pelas ruas do bairro:
Vinha um bonde a nove-pontos…
Marina puxou Marília
E diante do semovente
Crescendo em luzes aflitas
Num desesperado abraço
Postaram-se as menininhas.
II.
Manoel de Barros – o poeta da desinvenção do mundo, da linguagem das descoisas e do transver – via a poesia como verdadeiro ritual de existência. Cultor do espanto, o pantaneiro mato-grossense viveu boa parte da infância no Rio, onde aprendeu de fato a poetar. E, claro, nunca deixando de lado suas origens matutas, eternizou(-se) (n)o bairro em sua nostálgica, surreal e triste Enseada de Botafogo:
Ser menino aos trinta anos, que desgraça
Nesta borda do mar em Botafogo!
O Pantanal prova, à beira-mar, que só a verdadeira Poesia pode demonstrar tão doído assim o paradoxo da triste alegria:
Que vontade de chorar pelos mendigos!
Que vontade de voltar para a fazenda!
Por que deixam um menino que é do mato
Amar o mar com tanta violência?
III.
Já Murilo Mendes, no Brasil, parece ser o que melhor representou o surrealismo nas letras e, embora bom mineiro, o poeta – com pinceladas absurdamente inusitadas – pintou no poema Botafogo a história do local desde a sua pré-história, mesclando o mito de criação à própria natureza do bairro,
Desfilam algas sereias peixes e galeras
E legiões de homens desde a pré-história
Diante do Pão de Açúcar impassível
encerrando com a descrição do caos do espaço urbano – da Colônia aos arranha-céus –, tudo isso em flashes líricos, enigmáticos e surreais:
A filha do português debruçou-se à janela
Os anúncios luminosos leem seu busto
A enseada encerrou-se num arranha-céu