Baú de ossos
Há escritores que o tempo sufoca.
Pedro Nava, escritor bissexto, dedicou sua escritura ao gênero memórias. Por esse motivo, é considerado pela crítica o Proust dos trópicos. Suas reminiscências autobiográficas, remontando sempre ao tempo de infância e adolescência, fazem emergir o Rio dos anos 1920, cidade aonde chegaria ainda muito jovem.
Em Baú de ossos – um dos títulos que faria parte de sua densa memorialística –, além de milhares de referências a amigos já sumidos dos tempos do secundário, Nava vaga a memória pelos variados e glamourosos bairros do tempo, nos quais passeara sua adolescência:
“…vivia nas festinhas familiares de Botafogo, Laranjeiras (…) De festa em festa e de bairro em bairro (…)”
Mineiro que era, Nava teve vigência feliz e profícua na Cidade Maravilhosa. Em meio às elites influentes, tanto políticas quanto intelectuais.
Pairou uma grave interrogação, então, quando naquela noite de 1984, o octogenário Nava foi encontrado com um tiro na testa debaixo de uma árvore, na Glória.
De pai médico, o menino Pedro perambularia, por isso, diversas cidades do país e, em suas andanças, sua memória já ia captando a destruição do patrimônio histórico – ainda que vislumbrasse esperanças, à época, no Rio, como no trecho de Galo das trevas:
“Pois saibam quantos me lerem que estão sendo criminosamente demolidos os Recifes, Salvadores (…) Ouropretos que ainda existem em trechos da Gávea Botafogo…”
Embora as lembranças sejam de saudável vida, e que o bairro de Botafogo sempre tenha destaque na prosa de Pedro, conforme o fragmento de Chão de ferro reforça,
“Retomei a falação e pus-me ao par dos progressos de sua gíria (do Rio) durante minha curta ausência. (…) Cada ano diferente. Cada classe, cada profissão, cada clube tem sua língua. Mais. Cada bairro fala a sua. Botafogo, uma; a Tijuca, outra (…)”
toda essa memória da infância – emergida na madurez da idade – faz, no fundo, revelar por meio dos títulos obscuros e enigmáticos seu amargor.
Anos mais tarde, soube-se que o velho Nava vinha sendo sistematicamente chantageado e ameaçado por jovem gogo boy de Botafogo. Era avô, octogenário, respeitado escritor e homossexual. Suicidara-se.
A hipocrisia nossa de cada dia acabava, assim, por discriminar – e banir – uma obra inteira.