A Medeia de Botafogo
Você já viu artistas na TV e pensou que queria ser amiga dele ou dela? Pois é, eu sou dessas. Tem artista que me cativa do nada, coisa de empatia mesmo. Poderia falar de alguns de quem eu queria ser colega, com quem gostaria de tomar um chope e bater um papo, mas vou falar só de um. Ou melhor, de uma. Debora Lamm.
Podia ser por ela já ter vivido papel de jornalista em novelas, ou por ter se transformado de patinho feio para capa de revista em outra. Mas não. É porque Debora é exatamente o que eu achava dela: uma mulher de verdade. Não é mesmo uma mulher qualquer.
Debora Lamm é Medeia na peça Mata teu pai, adaptação de Grace Passô para a tragédia clássica de Eurípedes, com direção de Inez Viana, em cartaz de quinta a domingo, no Teatro Poeira, que fica na rua São João Batista 104.
Mata teu pai, o que o título procura revelar ou esconder?
Na verdade, o pontapé inicial da Medeia, do Mata teu pai, é colocar como responsável pela dramaturgia uma mulher. Os relatos mais conhecidos da Medeia, de Eurípedes, são pela ótica masculina, de um dramaturgo e não de uma dramaturga. E Medeia é uma das personagens femininas mais conhecidas. A premissa partiu de como seria um olhar feminino, porque é uma personagem muito curiosa. Quando a Grace reescreve, sem perder a estrutura trágica, ela tira desse lugar idealizado a figura de Jasão. A figura masculina não é mais um ser inalcançável. Medeia começou uma vida com Jasão em que ela abriu mão de muitas coisas. Ela vira uma estrangeira, abandona o lugar onde vivia para seguir com ele, que quebra o pacto no meio do caminho. Ali começa o verdadeiro drama.
Foi você que pediu para fazer o papel ou foi a Grace que escreveu pensando em você?
As duas coisas. A ideia de fazer a Medeia é da Inez, que tem um fascínio pela personagem. Quando ela me chamou para fazer o papel, de cara achei que a gente não deveria seguir o original de Eurípedes. Estamos passando por um momento muito delicado, em que a cultura está sendo muito afetada. Há um desmonte, um sucateamento. E o teatro tem muito esse papel de debate sobre o agora. O teatro contemporâneo é basicamente isso. Então a gente queria trazer o mito da Medeia para os dias de hoje. A Grace foi o primeiro nome em que pensamos, pela empatia e pela amizade que existe entre a gente. E foi um acerto.
Como é esse olhar feminino em Mata teu pai?
A Medeia contesta a figura do Jasão. Ele não fica naquele lugar inalcançável enquanto ela sofre. Existe uma autoestima, ela aponta as falhas dele. A gente vive esse momento feminista mesmo. Não podemos mais viver uma situação de desprestígio. Eu não posso trabalhar em um lugar em que um homem, só por ser homem, ganhe mais do que eu. Eu não posso parir uma criança, e o pai ter menos responsabilidade em relação a ela.
Você viu o filme Como nossos pais?
Vi, a Laís (Bodansky) inclusive já assistiu à peça. A Grace coloca esse discurso feminista urgente na boca da Medeia. Ela passa pelo assédio, fala sobre aborto e responsabiliza o homem, que, enquanto a figura de um pai, tem toda a responsabilidade – junto com ela – de ser uma referência para aquelas crianças. A Medeia do Mata teu pai tem esse diferencial do discurso natural da mulher de hoje, que não tem nada de panfletário. E não tem como ignorar isso.
Como os homens veem a peça?
Existem muitos homens que já entenderam que o feminismo é algo melhor para o mundo inteiro, que não é contra os homens, é só uma reestruturação de um pensamento, uma revolução necessária. Muitos já se deram conta da importância desse movimento. E muitos homens tiveram a figura do pai ausente, e é nesse momento que eles são capturados. Também os homens que estão satisfeitos com a sua posição social ficam encantados com a improbabilidade desta Medeia. Eles são arrebatados pela surpresa.
E as mulheres, elas se identificam?
Totalmente. Elas se sentem representadas.
A personagem da Medeia original era apaixonada e se desesperava ao se sentir abandonada. Essa nova Medeia proposta, mais ciente de seus direitos, é menos passional?
Não, ela é igualmente passional, mas tem consciência de seus direitos, e isso muda toda a dinâmica.
Nossa sociedade admite como natural o homem abandonar a família e, ao mesmo tempo, chama a mulher de louca…
Quando Jasão abandona Medeia para ficar com uma mulher – a Grace até coloca que “ele já me disse que foi uma mulher” – em nenhum momento, a Medeia de Mata teu pai tem qualquer sentimento em relação à nova mulher do ex-marido. O problema dela é com ele e não com a nova mulher. Ela pode ficar tranquila. O que corre de boca em boca – que ela vai matá-la – é mentira. É coisa dos retrógrados, dos reacionários. Por ela, Medeia não sente nada, só que ela não merecia estar com ele. Porque essa mulher de Jasão foi totalmente reescrita. O problema não é com ela. A Grace derruba lindamente aquela ideia de que as mulheres não são confiáveis e têm de competir entre si por aquele homem inalcançável.
Como o fato de Medeia ser imigrante influi na situação dela?
É outro paralelo que fizemos em relação aos refugiados de hoje em dia. Logo na primeira cena, Medeia se apresenta como bárbara. Ela é refugiada, não faz parte daquele lugar, seus pés não conhecem aquele chão, ela tem dificuldade de se comunicar, o que a torna mais bárbara ainda. Os refugiados são outro tema urgente de que a gente precisa falar.
Tem um momento na peça em que Medeia está transtornada, num cenário de degradação – feito de sucata eletrônica –, que parece representar a degradação da vida dela. O quanto essa caminhada influi para a tomada de consciência?
Medeia vai se dando conta, a cada passo, de toda a responsabilidade que ela tem, sozinha, estando com aquelas filhas. Por que a gente não deixou de fora o coro grego, representado pelas Meninas da Gamboa? Porque o coro grego representa a opinião da maioria; e essa opinião, como contraponto, era muito importante, dramaturgicamente, para mostrar o quanto Medeia estava deslocada.
O coro das Meninas da Gamboa é formado a partir de uma comunidade que tem história de violência mais exacerbada do que a zona sul, por exemplo…
Não é à toa. E é assim com os outros coros que formamos em outras cidades. A idade mínima de 65 anos também é uma exigência, porque existe uma reverência à ancestralidade feminina, a gente tenta formar grupos bem diversos, muitas começaram a atuar agora, às vezes porque o marido faleceu ou porque finalmente teve coragem. É uma homenagem a elas e a todas as mulheres que chegam a essa idade e percorrem essa estrada.
As senhoras do coro se identificaram com essa Medeia?
Durante os ensaios, elas foram entendendo, perfeitamente, qual o propósito de tudo e o que estava sendo dito. Quando eu as olho em cena, vejo que elas estão entendendo perfeitamente o que estou dizendo. Elas são pensantes, optaram por estar ali.
Essa Medeia tem noção de que ela representa várias mulheres, ela sabe que não está sozinha?
Sim, tanto que ela é totalmente épica. Não existe quarta parede*. Ela parte do princípio de que a plateia está entendendo tudo o que ela diz e que todas pensam como ela.
O público vai ao camarim depois do espetáculo falar sobre a peça?
Sim, as pessoas ficam muito tocadas com a força dela. Medeia é uma bárbara, é uma personagem violenta, mas, ao mesmo tempo, elas concordam com as coisas que ela diz.
A entrevista chega ao fim. Medeia nos une. Mas há mais. Há aquela tal mulher de verdade… aquela mulher comum, que sorri para quem cruza seu caminho, feminina e feminista, que gosta de diversidade e que adora Botafogo!
“Eu moro em Botafogo há mais de dez anos e amo isso aqui. Foi o bairro que eu escolhi. Eu acho Botafogo um bairro democrático, colorido, onde as pessoas são diversas e isso me agrada. Tem pra todo mundo. Outra coisa de que eu gosto é que, geograficamente, você já está no meio do caminho para qualquer lugar. Eu vivo o bairro. Vou à feira de orgânicos na Capistrano de Abreu, ando muito a pé, vou ao cinema, frequento vários bares. Eu amo o meu bairro!”, exalta Debora.
Enfim, descubro: somos Medeias que amam Botafogo.
Serviço:
A temporada vai até 29 de outubro
Quinta, sexta e sábado, às 21h
Domingo, às 19h
Ingressos a R$ 60
* parede imaginária situada na frente do palco do teatro, através da qual a plateia assiste passiva à ação encenada.
Fotos de divulgação: Alice Macedo