Um malandro em Botafogo

Um malandro em Botafogo

Era num apartamento na rua Paulino Fernandes que o saudoso Bezerra da Silva recebia compositores e amigos toda terça-feira para uma roda de samba com mocotó. O cantor e multi-instrumentista aproveitava esses encontros para escolher as músicas que iria gravar. Bezerra da Silva foi intérprete da realidade das favelas e da pobreza. Tendo como temática a malandragem, o consumo de drogas e a crítica social, sua arte recebeu o apelido pejorativo de “sambandido”; mas também ganhou admiradores, como os grupos O Rappa, Planet Hemp e Barão Vermelho.

Se liga, malandragem. Pra sobreviver na miséria, não dá pra ser mané. O pernambucano José Bezerra da Silva chegou ao Rio de Janeiro sozinho em 1942, com apenas 15 anos, à procura do pai, que o rejeitou. Morou no Morro do Cantagalo, entre Copacabana e Ipanema, trabalhando como pintor de paredes. Perdeu o trabalho; passou fome; foi preso várias vezes – “sou campeão de averiguações, conheço todas as delegacias da zona sul, fui em cana em todas elas, mas nunca fui fichado” –; morou na rua entre 1954 e 1961, disputando espaço com outros mendigos; tentou suicídio e foi salvo ao ser acolhido por um terreiro de umbanda, que mostrou a ele o caminho da música. Enquanto cuidava do espírito, aprendeu a tocar vários instrumentos musicais. E foi trabalhar na orquestra da TV Globo em 1976.

Em paralelo ao trabalho fixo na emissora, Bezerra da Silva tocava a carreira, em ascensão desde que lançara o disco “Partido alto nota dez”. Compositor apenas razoável, mas intérprete de primeira, ele percorria as bocadas em busca das músicas de compositores desconhecidos que eram cantadas nas biroscas. No repertório, com uma boa dose de humor e ironia, personagens e histórias das favelas e do submundo, como o dedo-duro – “O bicho esticado na mesa / Era dedo nervoso e eu não sabia / Enquanto a malandragem fazia a cabeça/O indicador do defunto tremia” (“Defunto caguete” Adelzonilton/Franco Teixeira/Ubirajara Lúcio) –, o político demagogo – Ele fez questão de beber água da chuva/foi lá no terreiro pedir ajuda/bateu cabeça no gongá/mas ele não se deu bem/porque o guia que estava incorporado/disse esse político é safado/cuidado na hora de votar/também disse, meu irmão/se liga no que eu vou lhe dizer/hoje ele pede seu voto/amanha manda os homens lhe bater/podes crer (“Candidato caô caô”) –, o usuário de drogas – “Meu vizinho jogou/Uma semente no seu quintal/De repente brotou/Um tremendo matagal/Quando alguém lhe perguntava/Que mato é esse que eu nunca vi?/Ele só respondia/Não sei, não conheço isso nasceu aí” (“A semente” – Roxinho / Felipão / Walmir da Purificação/Tião Miranda) –, o malandro – “Malandro é o cara/Que sabe das coisas/Malandro é aquele/Que sabe o que quer/Malandro é o cara/Que tá com dinheiro/E não se compara/Com um Zé Mané” (“Malandro é malandro e mané é mané” – Neguinho da Beija-Flor) – o vacilão – “Eu conheço uma pá de otário/Metido a malandro que anda gingando/Crente que tá abafando, e só aprendeu a falar:/Como é que é? Como é que tá? (“Malandro não vacila” – Julinho/Bezerra da Silva) e a elite corrupta: “Você me chamou para esse pagode/ e me avisou: “Aqui não tem pobre!”/Até me pediu pra pisar de mansinho/porque sou da cor, eu sou escurinho/Aqui realmente está toda a nata/doutores, senhores, até magnata/Com a bebedeira e a discussão/tirei a minha conclusão:/Se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão” (“Reunião de bacana – se gritar pega ladrão” – Ary do Cavaco/ Bebeto Di São João).

Festa com mocotó

Em 1981, Bezerra da Silva assinou contrato com a gravadora RCA, assumindo o compromisso de gravar um disco por ano. O artista negociou um adiantamento para comprar um apartamento de três quartos na rua Paulino Fernandes, em Botafogo. Lá, toda terça-feira – dia de folga da Globo –, ele recebia compositores e amigos para um mocotó, regado a cerveja e caipirinha, que varava a noite, para desespero de seus vizinhos.

Era então que compositores apresentavam seus sambas para Bezerra da Silva escolher as músicas dos próximos discos. Em 1984, ele pediu demissão da Globo para se dedicar exclusivamente à carreira de cantor. Após a lua de mel inicial com a gravadora, Bezerra da Silva começou a ficar insatisfeito com a baixa remuneração e desconfiado de que a empresa lhe passava a perna, deixando-o “na geladeira” para favorecer outros sambistas. Começou, então, a cuidar do próprio marketing, conseguindo que seus sambas fossem tocados nos sistemas de som comunitários e fazendo shows em favelas e presídios. Em 1993, finalmente, o artista rescindiu o contrato com a gravadora.

Dois anos depois, Bezerra da Silva e os cantores Moreira da Silva e Dicró lançaram “Os três malandros in concert”, uma paródia do espetáculo de sucesso mundial “Os três tenores”, com os cantores eruditos Luciano Pavarotti, José Carreras e Plácido Domingo. O disco de Bezerra, Moreira e Dicró rendeu um show de mesmo nome no Canecão, antiga casa de espetáculos de Botafogo.

Em 1996, a convite da banda Planet Hemp, de Marcelo D2, Bezerra voltou ao Canecão. “Era para cantar umas duas músicas, acabou cantando umas cinco ou seis”, contou D2, que admirava a verdade e a transgressão do partideiro. O malandro ganhou outros fãs, como a Banda Barão Vermelho, que gravou “Malandragem dá um tempo” – “Vou apertar/mas não vou acender agora…” – e O Rappa, que fez sua versão de “Candidato caô caô”. Em 2001, quatro anos antes de morrer, Bezerra da Silva se converteu à doutrina da Igreja Universal do Reino de Deus, naquela que talvez tenha sido a sua última malandragem. Começava, então, a perseguição às religiões de matriz africana, ao mesmo tempo em que as igrejas evangélicas conquistavam poder na favela e nos presídios. Bezerra da Silva, como bom malandro que era, se adaptou ao sistema.

Antonio Augusto Brito