Tiro, porrada e bomba!
Ao longo da história do homem, o termo ditadura caracterizou diferentes formas de poder político, quer seja na Roma antiga, quer seja na França revolucionária. Em Roma, sempre que havia a iminência de um tumultus, isto é, uma rebelião popular, designava-se um ditador até que a situação se normalizasse. As características maiores dessa forma de poder são o controle total das instituições e o cerceamento ilimitado das liberdades coletivas e individuais. No caso romano, a ditadura não ultrapassava o período de seis meses.
Na visão de Aristóteles, ditadura é o regime da mais pura e cínica violação às regras estipuladas pela coletividade.
No entanto, neste contexto de miséria intelectual e política em que mergulhamos, há incautos – idiotas! – que bradam por regimes autoritários sem sequer saber – ideológica e historicamente – o que reivindicam.
Em Tropical Sol da Liberdade, Ana Maria Machado – mais conhecida como autora infanto-juvenil – volta a um passado repleto de traumáticas lembranças. Como aquela do dia em que um estudante brutalmente assassinado num restaurante curiosamente chamado Calabouço gerou consternação e tumultus na cidade:
Das janelas pessoas atiravam papel picado, aplaudiam. (…) A cidade inteira se comovia pela vida de um menino. (…) Quando a procissão fúnebre ia deixando a praia do Flamengo para entrar na de Botafogo, já era noitinha, naquela paisagem de cartão-postal carioca que é a enseada toda cercada de luzes com a silhueta do Pão de Açúcar ao fundo.
Publicado no ano de 1988, Tropical Sol da Liberdade traz as reminiscências de Lena, personagem assolado por lembranças torturantes da ditadura e do terrível período de chumbo, quando o “terror de estado” recheou de bombas as embaixadas polonesa e soviética, ambas em Botafogo.
Aliás, o bairro será cenário de um dos mais ardorosos episódios do embate entre a liberdade e a truculência. Vejamos.
As ditaduras nutrem tara patológica por campos de concentração. Na falta de guetos específicos, optam por estádios de futebol. Assim foi com Victor Jara, poeta chileno; assim foi com Garcia Lorca, poeta andaluz. Assim seria naquele fatídico junho de 1968, quando meganhas invadiram a reitoria da UFRJ, praia Vermelha, e confinaram em General Severiano, na base da porrada, do tiro, da bomba – e da humilhação –, mais de 300 estudantes fortemente desarmados. Lena recorda:
Pensei que fosse da época do campo do Botafogo, quando houve a invasão da reitoria. As lembranças vinham nítidas, a todas duas. Amália concordou: — Ah, isso sim, deve ter sido no começo de junho.
Os personagens do romance de Ana Maria Machado se veem enredados – e assolados – pelo drama passado naquele improvisado gueto. Traumas irreversíveis:
Amália até hoje sentia de novo o choque que a atingiu quando viu pela primeira vez a pequena Cláudia brincando de campo de Botafogo com as bonecas, todas enfileiradinhas, deitadas de cara para o chão, enquanto outra, pela mão da menina, passeava entre elas de um lado para o outro dando chutes em meio a gritos e xingamentos de Cláudia.
De acordo com o mestre Eduardo Portela, Tropical Sol da Liberdade é possivelmente o melhor romance político da literatura brasileira contemporânea.
Muito embora – até os nossos dias – as ditaduras sejam plenas, o pão seja caro e a liberdade pequena.