Sempre é tempo de Glauber
“A função do artista é violentar”. O que diriam os fascistas que invadiram a exposição Queermuseum – cartografias da diferença na arte brasileira, em Porto Alegre – naquilo que talvez tenha sido sua primeira incursão a um museu – se lá fossem recebidos com essa frase? Ela foi dita pelo baiano Glauber Rocha, um dos artistas mais geniais e também mais censurados nos anos da ditadura militar. O cineasta morou com a família em Botafogo, na década de 1970. A casa ficava próxima à rua Sorocaba 190, onde ficava – até perder o patrocínio – o centro cultural Tempo Glauber, idealizado por Lúcia Rocha, mãe do cineasta. Glauber só viveu 41 anos, o suficiente para abalar as estruturas e ganhar o mundo “com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.
Vale a pena lembrar um dos maiores cineastas brasileiros, certamente o mais polêmico. Foi perto daqui – no Parque Lage, na Lagoa Rodrigo de Freitas – que, há exatos 50 anos, ele filmou Terra em transe. A história se passa em Eldorado, onde a política é um negócio sujo. O país fictício tem governantes corruptos no poder, partidários e aliados assassinos, fracos e extremistas — à direita e à esquerda —, o que não facilita em nada a vida do povo, sem saber para qual lado seguir. Terminam por escolher um líder populista, que promete a solução para a falta de terra, de emprego e de comida. Qualquer semelhança com o Brasil e o momento em que vivemos não é mera coincidência. Lançado em 1967, o filme foi proibido pela ditadura militar e execrado por boa parte da esquerda.
Glauber não se importava com a crítica. “O que interessa é a criação. A linguagem estabelecida, em qualquer arte, cansa.”, disse certa vez. Em 1964, seu filme Deus e o diabo na terra do sol, inspirado na literatura de cordel, já havia recebido muitas críticas negativas. Religiosos e conservadores não curtiram muito um beato negro e seus seguidores perseguidos por jagunços apoiados pelos coronéis em aliança com a igreja católica.
Provocador, Glauber seguia polemizando em seus filmes, nos artigos que publicava, no Pasquim e no Correio Braziliense, ou nas entrevistas, sempre um prato cheio para jornalistas à procura de uma boa frase. “O cinema novo ficou com a utopia brasileira. Se ela é feia, irregular, suja, confusa, caótica, é também bonita, desarmônica, iluminante, revolucionária.” Outra: “Adeus, Europa! Vamos descobrir a feijoada, o carnaval, o frevo, as coisas nacionais. Existe o Brasil! Nós somos negros, mulatos, índios, nós somos um povo de nordestinos, a nossa cultura é a macumba, não é a ópera. Vamos descobrir o Brasil!” Ou ainda: “a verdade revolucionária está com as minorias”.
Sem apoio para fazer seus filmes, Glauber partiu para o exílio, em 1971. Durante cinco anos, transitou por Europa, Estados Unidos, norte da África e América Latina. Ao retornar ao país, Glauber se envolveu em nova polêmica. Em 1976, ao saber que o pintor Di Cavalcanti havia morrido, ele pegou a câmera, correu para o velório, no MAM – Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e, depois, para o enterro, no cemitério São João Batista, em Botafogo. A família não gostou, e a filha do pintor conseguiu a proibição do curta-metragem. Di provavelmente teria achado graça. O júri do Festival de Cannes adorou.
No ano seguinte, uma tragédia abalaria profundamente Glauber Rocha. Sua irmã caçula, Anecy Rocha, atriz de talento, que protagonizou diversos filmes e teve participação em algumas novelas, morreria aos 34 anos ao despencar no fosso do elevador do prédio em que morava, em Botafogo.
Deprimido, Glauber ainda filmou, em 1978, A idade da terra, com locações em Salvador, Brasília e Rio de Janeiro. Para variar, teve problemas com a censura. Durante as filmagens da procissão de Nossa Senhora da Conceição da Praia, um padre católico protestou, dizendo que Jece Valadão, ator de chanchadas, não poderia fazer o papel de Cristo. Outra polêmica foi causada pelo diretor cultural do Museu de Arte Sacra da Bahia, Valentim Calderón, que proibiu Glauber Rocha de filmar com atores dentro do museu.
Em 1981, Glauber viajou pela Europa para promover o filme. Na cidade de Sintra, em Portugal, sentiu-se mal e foi diagnosticado com pericardite, uma inflamação no pericárdio, tecido que envolve o coração. Apesar do tratamento, a doença se agravou, e Glauber retornou para o Rio às pressas, no dia 21 de agosto. Levado para a Clínica Bambina, em Botafogo, ele morreu às 4 horas da manhã do dia seguinte. Assim como o amigo Di, foi enterrado no São João Batista. Com uma obra instigante e multifacetada, Glauber Rocha – repórter, jornalista, ator, cineasta e ilustrador – foi um artista essencialmente brasileiro. Talvez por isso, tenha sido tão aclamado internacionalmente. “A arte não é só talento, mas, sobretudo, coragem.”, dizia Glauber. É preciso coragem para lutar pela arte e por nossa cultura, sobretudo nos momentos mais difíceis. Como agora.