Rock horror
Há músicos que são escritores, e vice-versa. Mário de Andrade, por exemplo, era um desses.
Conforme sabemos, infelizmente, nesses casos, apenas uma das Artes acaba por predominar, isto é: ou bem o artista é reconhecido como músico, ou bem é reconhecido como escritor. E – que fique evidente – refiro-me especificamente aqui a escritores de livros – e a músicos variados –, do clássico ao rock; do samba à chamada MPB.
Há casos de artistas, no entanto, que transitam em nichos inusitados. Chico Buarque, por exemplo, embora seja reconhecido entre nós por sua verve poético-musical, publicou uma variedade de peças teatrais e premiados romances. Inclusive, em boa parte da Europa, é reconhecido apenas como grande autor literário. Muitos, aliás, se surpreendem ao descobrir sua notoriedade no Brasil como artista popular.
Com Martinho da Vila ocorre algo quase semelhante: poucos sabem aqui, por exemplo, que – para além da música – Martinho é profícuo escritor, e que parte da Europa o reconhece como autor de antropológicas sagas romanescas sobre questões da brasilidade.
Do rock também emergem escribas de grosso calibre, embora com obras de reconhecimento menos abrangente ainda do que os dois artistas anteriormente citados. É o caso do eterno titânico Tony Bellotto.
Bellotto, que estrearia na literatura em 1995 com o policial Bellini e a esfinge, é criador do detetive Remo Bellini, protagonista que originou série de romances e filmes. E o incansável rockeiro é também editor de Rio noir, coletânea de contos, na qual mantém o estilo policialesco. O seu Coroas saradas traz um narrador gigolô, especialista em CSC (Coroas Saradas Casadas) que, em determinado momento, é induzido a matar o marido de uma delas, um tal senhor Caramujo, mediante boa quantia de dinheiro. E o cenário onde se desdobrará a trama mortal não podia ser mais perfeito:
Toda primeira terça-feira de cada mês, às dez da manhã, com sol ou com chuva, ele ia até o cemitério São João Batista, em Botafogo, colocar flores no túmulo da mãe. A velha tinha morrido numa terça-feira, quinze anos atrás, e desde então o maluco ia uma vez por mês levar flores pra falecida.
Nesse exato momento, para salvar a saúde de sua mãe, menos coroa do que a decrépita coroa francesa que por ora comia e cujo marido iria matar,o comedor de CSC – eventualmente de CSS (Coroas Saradas Separadas) ou mesmo de VS (Viúvas Saradas) – converter-se-á em inescrupuloso assassino:
Encostei o revólver na nuca do infeliz e atirei. Lembrei de pegar a carteira dele, pra parecer assalto, e saí andando meio zoado. Só parei de andar quando cheguei no aterro, na praia de Botafogo. Tirei o tênis e caminhei até a água sentindo a areia fria no meu pé. Tirei o revólver e a carteira do Caramujo do bolso e joguei longe, na água.
O terror das CSC, CS e VS de Bellotto, vacilante, acaba por cumprir a máxima que circunda todo criminoso – seja por precaução ou nostalgia –, refazendo o percurso do próprio horror:
Eu tinha um monte de lugares pra ir, mas decidi voltar à praia de Botafogo, não sei por quê. Peguei o 434, desci na Real Grandeza e fui andando até o aterro. Fazia sol e eu fiquei sentado num banco, olhando o mar. Olhei para a areia, com medo de que o mar tivesse trazido de vota a carteira e o revólver. Não vi nada.