Poder e loucura
O Condomínio Les Palais, no final da rua Marquês de Olinda, esconde a história de uma clínica da nobreza que se transformou no maior manicômio privado da América do Sul. Lá, foram atendidas personalidades as mais diversas, de nobres a celebridades, entre elas a Princesa Isabel, a dançarina performática Luz del Fuego, os jogadores do Botafogo Heleno de Freitas e Garrincha, e o escritor Paulo Coelho.
Quando o médico e empresário pernambucano Manoel Joaquim Fernandes Eiras (foto) abriu sua clínica em 1865, no sopé do Morro Mundo Novo, em Botafogo, ela ainda não era clínica psiquiátrica. Sequer tinha o nome do dono, que preferiu batizá-la de Casa Imperial de Saúde e de Convalescença, decerto para aproveitar o bom trânsito junto à Princesa Isabel, a seu marido Conde D’Eu e a toda a corte engalanada que habitava Botafogo e arredores. Segundo consta, a princesa teria mandado melhorar a pavimentação do caminho entre a clínica, na rua Assunção nº 2, e o Paço Isabel – atual Palácio Guanabara – para facilitar seu acesso à casa de saúde onde ela fazia tratamento. Não, a Princesa Isabel não era louca. Sua bisavó, sim. Tanto que virou Maria I, a Louca. Mas isso não vem ao caso. A herdeira do trono fazia tratamento hidroterápico na clínica.
Desde a década de 1840, o Brasil de Pedro II procurava assimilar as últimas novidades clínicas de cientistas europeus que preconizavam a construção de hospícios para tratamento de insanos. Em 1852, o Imperador havia inaugurado o Hospício Dom Pedro II, em Botafogo. Manuel Eiras, médico particular da princesa e empreendedor, viu ali uma oportunidade de negócio: um hospital psiquiátrico privado com uma equipe de especialistas renomados para tratar gente diferenciada, que pudesse pagar pelo luxo e pela exclusividade.
O médico-empresário estava certo. Em pouco tempo, as internações psiquiátricas viraram solução para todos os males no Brasil. Pessoas eram recolhidas em hospícios por qualquer motivo. O fenômeno foi retratado por Machado de Assis, com a ironia de sempre, no conto “O Alienista”, de 1882.
“Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?”
― Machado de Assis, “O Alienista”
Internava-se por ordem de chefes de polícia, religiosos, delegados e familiares, por motivos que, muitas vezes, confundiam doença com desvio de padrões morais. Foi o caso da capixaba Dora Vivacqua. Ela ficaria famosa como a dançarina e naturalista Luz del Fuego, que se apresentava seminua, contracenando com duas cobras vivas. Por ser uma jovem de espírito livre das convenções sociais, Dora representava uma ameaça à moral vigente. Sua primeira internação psiquiátrica, em Belo Horizonte, foi pedida pela própria irmã, quando esta encontrou o marido assediando Dora. A segunda ocorreu depois de um de seus passeios regulares. Dora se embrenhou na mata e retornou com duas cobras-cipó enroladas em seu corpo nu, coberto apenas por algumas poucas folhas. Dessa vez, ela foi internada na Casa de Saúde Dr. Eiras, de onde conseguiu sair com a ajuda de outra irmã e de amigos.
Outro hóspede da Dr. Eiras foi o jogador de futebol Heleno de Freitas. Frequentemente, ele sofria de surtos psicóticos, que se deviam à sífilis, doença contraída na juventude. Com Mané Garrincha, maior craque da história do Botafogo, o problema era o alcoolismo, agravado após sua aposentadoria. Garrincha foi internado várias vezes na Dr. Eiras. A última, no dia 19 de janeiro de 1983, quando deu entrada em coma alcoólico, morrendo na madrugada do dia seguinte.
Já para o escritor Paulo Coelho, as várias internações na Dr. Eiras – nos anos 1966, 1967 e 1968 – serviram de pesquisa de campo para sua literatura. “Era confortável ser louco aos 18 anos. Significava que você não teria mais responsabilidades”, dizia o escritor. “Dentro do hospício, a comida era boa, eu tinha cigarros, via um filme no cinema interno uma vez por semana. Sabia que não era louco, mas achava que, para ser um escritor, precisava passar por aquilo. Tudo era uma grande aventura”.
Ascensão e queda
De empresa familiar, a casa de saúde havia se tornado, na década de 1960, uma potência, graças aos vários convênios firmados com empresas públicas. Foram construídos outros pavilhões no amplo terreno da clínica em Botafogo – com novas especialidades, centros de pesquisa e até uma revista mensal – e um manicômio para pacientes crônicos, na cidade fluminense de Paracambi, com capacidade para 3.500 leitos. Essa grande expansão foi obra do novo administrador, o paraibano Leonel Miranda, que soube aproveitar a amizade com o presidente Costa e Silva, cultivada desde os tempos em que o general morou na rua São Clemente. Graças ao bom relacionamento com o ditador da vez, Leonel Miranda chegou ao posto de ministro da saúde, com planos de privatizar a rede pública de saúde. Como ministro, Miranda foi um dos signatários do Ato Institucional nº 5, que levou o país ao período mais terrível da ditadura militar, com perseguição, prisão, tortura e assassinato de opositores do regime.
A proximidade da clínica com o regime militar foi a ruína do negócio. Quando os ventos da redemocratização chegaram no fim da década de 1970, a Casa de Saúde Dr. Eiras já havia entrado em declínio. A aposta de Leonel Miranda no manicômio de Paracambi ia contra o nascente movimento de reforma psiquiátrica, que pregava a desospitalização e o fim dos manicômios, e só se sustentou enquanto teve o apoio dos militares. Para agravar a situação, a empresa foi acusada de utilizar o manicômio de Paracambi como prisão e local de experimentos clínicos com presos políticos e indigentes. A Dr. Eiras foi descredenciada do SUS após uma inspeção que atestou as péssimas condições do manicômio, e a unidade de Paracambi foi finalmente fechada na década de 2010, assim como a sede em Botafogo, que deu lugar a um empreendimento imobiliário de luxo – o condomínio Les Palais –, com oito prédios espalhados em um terreno de 36 mil m². Da Casa de Saúde Dr. Eiras, restou apenas o Chalet Olinda, prédio original tombado pelo decreto municipal de 1987.