Morte anunciada
A bem da verdade filosófica – desde Aristóteles –, a expressão tragédia tem conotações bastante específicas. Equivale a complexo conceito: grosso modo, o humano incorre no trágico sempre que, ao fugir do próprio destino, com ele, à frente, se depara. Portanto, o termo tragédia, utilizado cotidianamente pelo mass media, enquanto sinônimo de toda e qualquer fatalidade, serve e se adequa ao senso comum – embora esteja conceitualmente equivocado.
De início, algo já parecia dar errado naquela última noite do longínquo – e fatídico – ano de 1988.
Muitos não contornariam a curva do Pão de Açúcar; tantos não veriam o esplendoroso foguetório no céu; alguns tampouco brindariam ou chegariam a virar aquela madrugada; outros jamais sairiam daquele mar:
(…) mesmo na enseada de Botafogo, onde aconteceria o embarque, e em toda a baía de Guanabara, na qual, de tão tranquilas, as águas abrigadas não raro costumavam se assemelhar a um espelho, era possível perceber pequenas ondas. Flocos brancos de espuma mostravam aos marinheiros mais experientes (…) que fora da barra o mar poderia estar agitado.
E estava.
Afora isso, a embarcação utilizada para o frugal e inexpressivo passeio – nada mais que o contorno do morro Pão de Açúcar –, objetivando os fogos suntuosos do Réveillon na praia da Copacabana, não era nada adequada.
Basta dizer que a bordo havia cerca de 150 pessoas, quando o permitido seria o equivalente à metade desse número. Sem coletes. Sem botes. Sem nada. Presságios?
Em Bateau Mouche: uma tragédia brasileira, o escritor e jornalista Ivan Sant’Anna – refrescando a memória do tempo – retoma os 30 anos passados do “trágico” naufrágio que vitimou inocentes ao mesmo tempo em que deixou impunes corjas de investidores criminosos e irresponsáveis.
Além de todas as impropriedades técnicas da embarcação, a pesquisa de Sant’Anna revela a miséria a que os pilantras empresários submeteriam a seleta plateia – os Fiszman, os Lerner, os Wajngarten, os Camargo, os Abud, além de uma pá de gringos chics:
O Bateau Mouche se revelou uma enorme decepção para quem imaginou virar o ano numa festa chique e sofisticada. Além da decoração pouco refinada, havia no bar apenas uísque nacional, vinho Château Duvalier e cerveja (…)
Ivan Sant’Anna denuncia, outrossim, que o “sofisticado” Bateau Mouche IV não passava de um lagosteiro maquiado. E que, mais tarde, mal reformado e batizado Kamaloka, serviria também de puteiro flutuante a propósitos escusos de lascivos executivos na cidade:
Bateau Mouche IV zarpou do cais do Sol e Mar com quinze minutos de atraso, às 21h15. Da enseada de Botafogo, o Bateau seguiria até Copacabana, tendo à sua direita (boreste) o Iate Clube do Rio de Janeiro — que ficava num aterro que antes fora o Aeroclube do Brasil —, o bairro da Urca, a fortaleza de São João, o morro da Urca e o costão do Pão de Açúcar (…)
O barco, apresentando todas as irregularidades possíveis, ainda retornaria ao cais, ali no píer do restaurante Sol e Mar – atual Real Astoria. Fora interceptado pela Capitania dos Portos. E já fazia água:
(…) A poça acumulada já era o início do processo de “água aberta”, e com o Bateau ainda imóvel na enseada de Botafogo. Do lado de fora da baía de Guanabara, as condições do mar haviam piorado, inclusive no trecho entre a boca da enseada retangular da praia Vermelha e a ilha de Cotunduba, por onde o Bateau IV teria de passar em sua rota para Copacabana. Naquele ponto, ondas de meio metro de altura se sucediam a intervalos de 3,5 segundos (…)
Conta Ivan Sant’Anna que Vidal e Rivera – donos da empresa de passeios – mostraram, às carteiradas, sua força à guarda costeira no cais de Botafogo. E lá se foi o Mouche, livre, leve, solto. E lotado.
(…) à medida que o Bateau se afastava da enseada de Botafogo, rumo ao canal de navegação situado entre a ponta nordeste da fortaleza de São João e o forte da Laje, o mar tornava-se mais encrespado. À frente da embarcação, erguiam-se, na rota para Copacabana, os sólidos e imponentes rochedos dos morros da Urca e do Pão de Açúcar, marcos indeléveis da silhueta curvilínea da orla do Rio de Janeiro. Muito antes do fim da festa, o conjunto musical Café com Leite – que tocou à exaustão enquanto a confusão ocorria –, os Fiszman e os Camargo e os Abud, os mais de cinquenta passageiros e os tripulantes: todos, fatalmente, mortos.