Mordidelas ao pescoço

Mordidelas ao pescoço

Há bairros que se notabilizam pela quantidade de assassinatos ali cometidos. No Rio de Janeiro da “bala perdida” – eufemismo difícil de explicar no estrangeiro –, quase nenhum bairro escapa de entrar nessa macabra estatística, sobretudo quando a contabilidade é feita do Rebouças para lá, no sentido subúrbio e Zona Norte da cidade.

Dura realidade.

Em se tratando de ficção, a literatura universal também tem frequentemente se ocupado em destacar bairros dentro das variadas cidades do mundo, onde clássicos autores ambientam seus personagens e suas mirabolantes tramas assassinas.

Assim foi com o Vampiro de Curitiba, do esquecido Dalton Trevisan, ficção na qual o estuprador Nelsinho espalharia sua misoginia por quase todos os bairros da cidade; assim seria também com o serial killer londrino, que logo obteve notoriedade literária e, mais tarde,passaria à história como Jack, o estripador.

O escritor e jornalista Luciano Trigo, em Vampiro, vai situar seu assassino em série – um misto de Jack e Nelsinho – justamente no bairro de Botafogo:

Dessa forma, para espanto do protagonista, numa pacata manhã, no jornal:

(…) Adolescente encontrada morta em Botafogo. Minha primeira expectativa ao procurar a matéria na página indicada era que houvesse uma foto, um rosto que, ao mesmo tempo, tornasse aquela notícia “verdadeira” e, por se tratar de um rosto desconhecido, me permitisse assimilá-la como uma espécie de ficção.

Num alívio quase frustrado, o personagem constata:

Não havia nenhuma fotografia na matéria em questão, apenas um pequeno texto em uma coluna: fulana, dezenove anos, encontrada morta na madrugada de ontem, na rua Sorocaba.

A mescla de Jack, o estripador e Nelsinho – o vampiro de Curitiba – confere autenticidade e nonsense ao personagem de Trigo que, vampirescamente, morde as mulheres – antes de estripá-las:

— Sim, este psicopata está assassinando mulheres em Botafogo. Aliás, você não mora em Botafogo? Ele matou mais de uma mulher. — Moro, sim. — Você não lê o jornal (…)? Noite passada descobriram o corpo de uma adolescente na rua da Passagem.

Devido à voracidade libidinosa com que o protagonista exerce, na trama, seu sex appeal pelas ruas do bairro, realidade e ficção, à certa altura da narrativa, passam a se confundir na mente do próprio narrador:

Então me ocorreu uma hipótese que me deixou em pânico absoluto: seria eu o assassino das jovens encontradas mortas em Botafogo?

Enquanto a dúvida ronda a confusa cabeça do personagem na ficção, do lado duro da realidade a notícia – verdadeira ou falsa? – circula e não para:

“Inflação dispara”, “Mais uma jovem encontrada morta em Botafogo”.

Lucio Valentim