Luz no túnel

Luz no túnel

Há uma ignorância generalizada no ar. Momento ideal para que o “idiota da aldeia” entre em ação.

O pensador italiano Umberto Eco alertava para o fenômeno há tempos. Mas, cuidemos: o idiota* em aldeia global, internético e midiático está cheio de si, de razões. Se pensa ilustrado e, repleto de más intenções, vem também acompanhado das mais díspares e estapafúrdias finalidades ideológicas. Até mesmo a de angariar dinheiro. Além, evidentemente, a de confundir.

Afinal, quem está por trás das chamadas fake news e dos memes? Na era pós-Gutemberg, a mente do idiota se ergue e se espalha pala além das fronteiras de sua própria aldeia!

A quem atribuir, por exemplo, equívocos históricos em relação a importantes momentos ideológicos que formataram os séculos XVIII, XIX e XX, como o anarquismo, o socialismo, o nazismo, o comunismo? A quem interessa essa negação da história por intermédio da manipulação obtusa e confusa de tão relevantes conceitos seculares?

Houve um tempo em que todas as pessoas progressistas, humanistas e ditas “de bem” – estudantes, operários, escritores, pensadores – eram comunistas. Sobretudo considerado o contexto de desconserto em que incorria o mundo, ali por volta da metade do século passado.

Jorge Amado, fechando épica trilogia em Os subterrâneos da liberdade, narra a eclosão deste momento sombrio: na Espanha, Guerra Civil e Franco; na Alemanha o início do segundo conflito mundial; o fascismo avançando na Itália; e, entre nós, era em que Vargas cai nas graças de Hitler e Mussolini.

Ser comunista representava, então, ser contra tudo isso.

Verdadeiros heróis da epopeia de Amado, os comunistas serão impiedosamente caçados e torturados pela polícia, que tem o fim de exterminar o partido. Enquanto políticos, banqueiros, empresários e donos de jornais locupletam-se com a confusão, nos bairros operários a polícia prende e tortura líderes sindicais – e nas coxias do Estado Novo facções pró-nazistas e pró-americanos abocanham as benesses do Poder.

A despeito de todo esse contexto, o baiano e engajado Jorge Amado consegue trazer a sua sensualidade para o Rio, sede do Estado Novo e onde seus poderosos desfilam:

(…) o ex-ministro passeou o olhar desinteressado pela enseada esplêndida de Botafogo onde os raios do sol tropical criavam audaciosas cores sobre o verde do mar e o verde das árvores. Uma figura apressada de mulher, modestamente vestida mas de formoso perfil, andando ao lado da balaustrada, fê-lo concordar. — Bonita, não há dúvida. (…) nesse Rio tem cada mulherão (…) Do meu lugar de senador, é do que mais sinto falta (…)

Jorge fora deputado comunista. Assim como uma vastidão de escritores e poetas – urbi et orbi. E um dos episódios narrados neste romance, que tem por subtítulo A luz no túnel, é justamente o julgamento de Prestes, o maior líder comunista brasileiro:

Chegando quando dois tiras abriam caminho para Venâncio Florival e Artur Carneiro Macedo da Rocha, meteu-se atrás deles, um investigador quis barrar-lhe a entrada mas Venâncio, reconhecendo nela a moça antevista em Botafogo, perguntou-lhe: — Quer entrar? — Sou jornalista — respondeu Mariana. — De um jornal de São Paulo. — Deixa a moça entrar — recomendou o ex-senador a um policial. E ela viu-se de repente na sala repleta.

Sim. Naquele tempo, também repleto de bom senso, jornalistas admiravam líderes comunistas:

A moça sobre quem se tinham pousado os olhos de Venâncio Florival, na enseada de Botafogo, era Mariana.

Dirigindo-se para a sede do Tribunal de Segurança, a moça dizia, palpitante:

— Ficarei num canto, só quero é ver Prestes. Nunca o vi, é uma oportunidade única.

Em que espelho ficou perdida a nossa face?

* idiota (do grego antigo): cidadão privado, individualista e simplório, mas que se acha ilustrado e global.

A trilogia Subterrâneos da Liberdade

Lucio Valentim