Instinto

Instinto

Abarcando tanto a prosa quanto a poesia, o movimento equivaleu ao penúltimo cartel do século XIX, mantendo entre nós forte parentesco com o estilo naturalista. Daí o uso do termo composto – e genérico – realismo-naturalismo.

Grosso modo, enquanto o primeiro estilo ocupava-se com aspectos psicológicos do homem, o segundo concentrar-se-ia mais na faceta instintual e biológica que envolve as ações humanas. Na primeira vertente, o representante máximo seria Machado de Assis; na vertente naturalista – menos aclamada –, a principal referência é Aluísio Azevedo, sobretudo em textos como O Mulato, Casa de Pensão ou O Cortiço.

Foi a partir da visão naturalista de mundo, inclusive, que certos temas bastardos e tabus viriam à tona: o mulato ilustrado, educado na Europa é, possivelmente, o primeiro gay da prosa brasileira – e sua repercussão negativa obrigou Aluísio Azevedo a fugir para o Rio de Janeiro.

O cearense Adolfo Caminha – menos conhecido de todos – além de relatar em A Normalista a chocante história de um incesto entre a protagonista e o próprio padrinho, iria abalar ainda mais o conservadorismo tupiniquim com o Bom Crioulo, radicalizando o estigma retratado pelo homossexual mulato, de Azevedo: o seu personagem, além de gay é “crioulo” – e marujo.

Adolfo nos brindaria, por fim, com Tentação, história do casal provinciano – Adelaide e Evaristo – que vem para a Corte viver num chalé no chique e extremamente tentador Botafogo, em casa de amigos. De acordo com o anfitrião:

(…) a nossa casa, em Botafogo, se não é um palácio, também não é uma choupana (…) E concluía instando para que o amigo fizesse um sacrifício, abandonasse aquela vida de província pela civilização (…), por um chalezinho em Botafogo.

Uma vez na Corte, os matutos rumam a conhecer a casa do amigo:

Horas depois rodava um carro para Botafogo, conduzindo Evaristo de Holanda, a mulher e Luís Furtado. A residência deste era uma excelente casa de dois andares, vistosa, olhando para o Corcovado, nas imediações do cemitério de S. João Batista.

Ocorre é que, cheio de vícios cortesãos, Luís Furtado, anfitrião e alto funcionário na Corte, passara a nutrir cobiças pela mulher do amigo – almejando comê-la:

O secretário viu-a no dia da chegada e admirou-a intimamente, com olhadelas furtivas e traiçoeiras, enquanto o carro rodava para Botafogo. Ria, e o seu riso tinha um tique muito delicado, muito nobre, muito fino (…)

Adelaide, deslumbrada que estava com a vida do highlife, demorara a perceber o covil no qual o casal, voluntariamente, adentrava:

(…) a vida em Botafogo tinha qualquer coisa da vida em Petrópolis, era como um prolongamento do highlife, cuja sede firmara-se na antiga colônia alemã (…)

Acabou mantendo amizade com a mulher do homem que a cortejava, e a promiscuidade entre ambas se acirraria bairro adentro:

(…) E saíram de chapéu-de-sol aberto, uma jovialidade infantil, pelas ruas de Botafogo, a tomar o bonde. Os passageiros olhavam-nas com esse olhar curioso e indiscreto que às vezes confunde uma mulher honesta com uma horizontal.

Porém, se Botafogo era veneno e tesão na mente da casta moça interiorana,

(…) no meio de todas essas coisas erguia-se o vulto de um homem (…), que absolutamente não se parecia com aquele que ali estava a seu lado (…) um extraordinário medo apoderava-se dela, um pavor inexplicável (…) “a tentação”, chamando-a para o mistério do gozo e para a desonra, num apelo fidalgo de cavalheiro do Amor, num requinte donjuanesco de volúpia mundana…

só havia uma solução. A mais radical e, quiçá, menos realista possível:— Vamo-nos daqui (…) Mudemo-nos de uma vez… Abandonemos este Rio de Janeiro, que é um inferno… uma tentação! Para longe deste inferno!, para longe desta porqueira! Vive-se melhor, mais barato e mais honradamente na obscuridade da província, criando galinhas ou plantando jerimuns. Estou farta de aturar a pedantocracia de Botafogo!

Lucio Valentim