Hospício

Hospício

Andando pelas ruas do Rio, não há como ignorar a presença, ainda que obscura, de mendigos, maltrapilhos, pedintes e carentes de tudo. Crianças, velhos e bebês, até. E, assim como todos têm uma origem, todos têm também, claro, uma cor: a da exclusão e da indigência sociais. Por isso espanta um von richthofen na sarjeta.

Há bem pouco tempo, simples andarilhos urbanos – sobretudo se envolvidos com álcool e/ou outras drogas ditas pesadas – eram sumariamente recolhidos e isolados em sanatórios.

“Estou no Hospício (…) Estive no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra para aqui pelas mãos da polícia. Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão.”

Com essas palavras, Lima Barreto inicia o relato de uma das inúmeras vezes em que esteve internado no então chamado Hospício Nacional dos Alienados no Rio de Janeiro. No seu caso, a confinação via de regra se dava devido ao excesso do álcool em suas perambulações pela cidade:

“Atolava-me na bebida, no desgosto e na apreensão… (…) e eu bebia cachaça. Lembrava-me disso, vendo a biblioteca, o mar, os paquetes, os perus e faluas, que entravam na enseada de Botafogo, os pescadores a colher as redes, em canoas quase atracadas ao cais, e sonhava o mar livre que se adivinhava, lá fora da barra, ali bem perto.”

Inaugurado ainda no tempo do Rei, como Hospício Pedro II, o primeiro sanatório do Brasil, em Botafogo, abrigaria, em épocas distintas, a mente turbilhante de boa parte das letras nacionais. Lima, Gil, Sussekind, Torquato. Insanos, loucos, alienados: tudo farinha do mesmo saco:

“De mim para mim, tenho certeza que não sou louco, mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há 6 anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro.”

Em seu dramático Diário do Hospício, o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma encontra tempo para vislumbrar – num rompante – a réstia de poesia submersa nas pessoas e nas insignificantes coisas que circundam o patético ambiente:

“O hospício é bem construído (…) As salas são claras, os quartos amplos, de acordo com a sua capacidade e destino, tudo bem arejado, com o ar azul dessa linda enseada de Botafogo que nos consola na sua imarcescível beleza, quando a olhamos levemente enrugada pelo terral, através das grades do manicômio, quando amanhecemos lembrando que não sabemos sonhar mais… (…) Na Seção Pinel, que é a de que estou falando, reatei conhecimento com um rapaz português, que me conheceu quando era estudante.”

A seção Pinel era, à época, a área mais radical da loucura, onde havia confinamento dos loucos em surto – apelido, aliás, com o qual o Hospício se eternizaria, em referência a Instituto Philippe Pinel, seu nome de ofício. Coisa de louco o que Lima ali presenciou:

Um maluco vendo-me passar com um livro debaixo do braço, quando ia para o refeitório, disse: — Isto aqui está virando colégio!”

Um velho português que tem a vaga semelhança com Francisco José, imperador da Áustria, se crê por isso imperador. Seção Pinel.

“Um louco perguntou-me se Lisboa ficava em Minas Gerais.”

“(…) e Pereira, que imita dar traques.”

Num dia típico de desgosto e tédio, aprendemos com Lima Barreto que a beleza da cidade e da enseada se perde quando a visão é a da clausura:

Dia de São Sebastião. Um dia feio, nevoento. Olho a baía de Botafogo, cheio de tristeza. Não acho tão bela como sempre achei. Os longes dos Órgãos não se vêem; estão mergulhados em névoa. As montanhas de Niterói estão sem o cobalto de sempre; e as manchas de cortes e chanfraduras nelas aparecem como chagas. O casario está mergulhado, confuso, não se desenha bem no horizonte. Tudo é triste.”

Daí o recurso ao mito da terceira vez: o medo do eterno retorno àquele Cemitério dos vivos faz do aflito Barreto recorrer à técnica das falsas promessas que – ao fim e ao cabo, ainda que por linhas tortas – se cumpririam:

“Estou seguro que não voltarei a ele pela terceira vez; senão, saio dele para o São João Batista, que é próximo.”

Lucio Valentim