Genocídio indígena

Genocídio indígena

O Museu do Índio, em Botafogo, guardava um segredo terrível. Em 2012, durante uma investigação da Comissão Nacional da Verdade, constituída para apurar os crimes da ditadura, foi encontrado, em meio a várias caixas de documentos não catalogados, um relatório de sete mil páginas de uma investigação iniciada em 1967 e concluída em junho de 1968. No documento, havia um relato pormenorizado de atrocidades cometidas contra tribos indígenas de diversas regiões do país, durante os primeiros anos da ditadura militar. Tido como perdido para sempre num incêndio no Ministério da Agricultura e deixado para ser esquecido em alguma repartição da Funai, o relatório chegou praticamente intacto ao museu, em 2008, e virou um capítulo à parte no documento final da Comissão Nacional da Verdade.

Quando o pesquisador paulista Marcelo Zelic procurou o Museu do Índio em 2012, em nome da Comissão Nacional da Verdade, para investigar denúncias de violências contra povos indígenas, sabia que viera ao lugar certo. O museu, criado pelo antropólogo Darcy Ribeiro (foto) em 1953, possui o mais completo acervo das sociedades indígenas do Brasil. São mais de 15 mil peças etnográficas, 15 mil publicações – nacionais e estrangeiras – especializadas, mais de 70 mil registros audiovisuais – entre imagens, filmes, vídeos e gravações de áudio –, além de cerca de 800 mil documentos de texto sobre vários grupos indígenas e a política indigenista do Brasil do final do século 19 até os dias de hoje.

Roubos de terras, torturas e assassinatos

O que Marcelo Zelic não contava é que, em meio a tantos documentos, fosse encontrar o Relatório Figueiredo, documento de sete mil páginas, resultado de uma investigação sobre violência contra povos indígenas iniciada em 1967, pelo procurador cearense Jáder Figueiredo (foto), a pedido do então Ministério do Interior. Durante um ano, Figueiredo visitou 130 postos indígenas em 18 estados, percorrendo um total de 13 mil quilômetros. Em suas investigações, apurou denúncias de remoções forçadas de tribos inteiras por grileiros, que se apossavam de suas terras, com apoio de agentes públicos do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). A violência era a regra para os índios que resistissem à remoção: muitos foram submetidos ao trabalho escravo, ao confinamento, à prostituição forçada, alguns foram crucificados, outros receberam roupas e cobertores infectados com vírus da varíola, e algumas aldeias foram atacadas com bombas de dinamite jogada de aviões. O caso mais pavoroso foi o de uma índia do Mato Grosso, presa de cabeça para baixo entre duas estacas e cortada ao meio por um facão.

Recuperado em 2012, o Relatório Figueiredo foi de grande importância para embasar o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, concluído em dezembro de 2014. No capítulo “Violações de direitos humanos dos povos indígenas”, o documento da CNV concluiu que mais de 8,3 mil índios foram mortos durante a ditadura militar. Entre as vítimas, estão 3.500 indíos Cinta-Larga (RO), 2.650 Waimiri-Atroari (AM), 1.180 índios da etnia Tapayuna (MT), 354 Yanomamis (AM/RR), 192 índios da etnia Xetá (PR), 176 Panarás (MT), 118 Parakanãs (PA), 85 Xavantes de Marãiwatsédé (MT), 72 Arawetés (PA) e 14 índios Arara (PA).

O documento recomendou as demarcações de terras indígenas como forma de reduzir a violência, mas elas estão paradas desde 2015. No governo Temer, a situação dos povos indígenas foi agravada com a substituição de funcionários da Funai por indicados da bancada ruralista e por movimentos no Congresso que visam a revogar demarcações e afrouxar as leis de proteção ambiental.

O Museu do Índio, fechado para reformas desde 2016*, é de valor inestimável como repositório da memória de centenas de tribos indígenas brasileiras, muitas delas já extintas. Ele é fundamental como fonte de pesquisa para entendermos a nossa história e para transformá-la. Essa é a função do Museu do Índio, como, de resto, a de todos os museus. E a sociedade brasileira deve cobrar que eles sejam preservados a todo custo.

 * Embora esteja fechado desde 2016, o museu permanece funcionando em suas tarefas de preservação, conservação, pesquisa e divulgação do acervo para o público, por meio de mídias digitais e de várias exposições itinerantes.

Antonio Augusto Brito