Bairro adentro

Bairro adentro

A propósito de inundações, vou fechar este ligeiro artigo com a narração de um fato extraordinário (…) Lugar da cena: a praia do Botafogo, convertida numa Veneza barrenta (…)

Com estas palavras, o maior dramaturgo do 2º Império e da 1ª República fechava a crônica daquela semana.

O “fato extraordinário” a ser narrado pelo cronista talvez não venha ao caso agora, mas o “lugar da cena” – e o que na paisagem da praia naquele então se via – nos é bastante familiar.

Na crônica, corria o longínquo ano de 1886.

Vindo do Maranhão, profícuo dramaturgo, poeta, contista e jornalista, Artur Azevedo – também conhecido como irmão do autor de O Cortiço – faria estardalhaço literário na passagem do Império para a República, com contos, crônicas e peças de teatro, cujo interesse era a ágil – e frágil – caricatura do comportamento de uma classe e de uma cidade em transição de costumes.

Os personagens que circundam os dramas e contos de Azevedo são quase sempre oriundos das camadas médias emergentes, cujo sonho maior de consumo é, conforme um dos personagens mesmo confessa, “ganhar na loteria para viajar para a Europa e comprar uma casa em Botafogo”.

O bairro, então, vai aparecer em inúmeras peças: nas erótico-jocosas, como A filha de Maria Angu; nas políticas, como A Capital Federal – ambas do final o século XIX –; ou simplesmente nas ‘de fofocas’, do tipo Vida alheia, essa dos idos de 1929.

Assim como o de todo bom cronista, o ofício de Artur é reparar no alheio e fazer a crítica do cotidiano. Logo, em As melhores crônicas de Artur Azevedo, encontra-se o Diário de notícias de palanque, e nele – além daquela que atesta o mar de lama no qual se transformava a praia de Botafogo –, o cronista retornará ao bairro, repleto de questões.

Como, por exemplo, para expor o precário transporte público e, de soslaio, tocar em questões de gênero, raça e classe. O próprio cronista ainda nos deixa clara a sua:

Ainda assim, muita gente volta das festas pedes calcantes* por falta absoluta de condução. A minha cozinheira, coitada, que só sai à noite, (…) eram 2 horas da madrugada quando me bateu à porta. Sem ter boas pernas, foi obrigada a vir a pé de Botafogo à rua Fresca! Nem como pingente conseguiu arranjar-se, pois, por ser preta, foi brutalmente empurrada todas as vezes que tentou a conquista de dois palmos de estribo! Ontem o meu café matinal ressentia-se daquela caminhada…

Em 15 de dezembro de 1885, denunciava no “Diário” – emocionado – um episódio de trabalho infantil e o consequente suicídio da criança maltratada:

Vieram-me lágrimas aos olhos ao ler o tópico em que, depois de haver dito que fizera uma vez a pé o trajeto da rua da Real Grandeza, em Botafogo, à rua Sete de Setembro, a pobre criança, escreveu: “Ora… isso… bem pensado, não é para ter pena e doer o coração?…”. É sim, pobre criança, e para doer o coração de quem não o tenha empreendido ao egoísmo ganancioso da vida mercantil.

Na sequência, ao falar do preço dos aluguéis e da escassez de imóveis na cidade, o dramaturgo testemunharia o nascimento das famosas vilas do bairro, das quais era adepto:

Um grande terreno, situado na fralda daquela pitoresca montanha do Mundo Novo, que se ergue altiva entre Botafogo e Laranjeiras, e está mesmo a pedir um túnel, que ligue as ruas Cardoso Júnior, deste, e Bambina, daquele bairro. No terreno caberia um palácio, mas o Sr. Ferreira, que não tem nada de tolo, e muito de democrata, construiu nele, em vez de um palácio, dezesseis elegantes casinhas de pedra e cal. A Vila Blandina (…)

No Diário de notícias de palanque, de 5 de março de 1890, Artur anotara com indignação um tema sempre atual – e hipócrita: a arbitrariedade policial, sobretudo, com as camadas marginalizadas e prostituídas da sociedade:

(…) quando no tempo do império, houve um chefe de polícia bastante ridículo para proibir que as mulheres da vida airada andassem de carro descoberto, uma senhora da nossa primeira sociedade passou por escandaloso vexame na praia de Botafogo. (…) é injusto que essas pobres mulheres sejam estigmatizadas (…) Deixai ao próprio arbítrio dos cidadãos os cuidados de sua saúde (…) tratai, isso sim, da sífilis moral, que lavra, desgraçadamente, em todas as camadas da nossa sociedade.

Neste sentido, sempre divertida – mas crítica –, a crônica de Azevedo seguiria adiante,

Há muitos anos passava-se num bonde de Botafogo, num bonde fechado, uma cena que nunca mais se me varreu da memória. (…) Os efeitos da refração do sol eram maravilhosos. O mar e as montanhas azuis da outra banda tinham alguma coisa de fantásticos. A serra dos órgãos nunca me pareceu tão bela. Ao meu lado vinha um sujeito muito entretido a ler (…) O sujeito tinha ao pé de si uma linda e elegante mulher (…)

bairro – e bonde – adentro, exibindo toda a sua poética.

* Do Latim; algo como “a pé”.

Lucio Valentim