Ave, Silviano!

Ave, Silviano!

Nas letras nacionais, contemporaneamente, devíamos render loas a Silviano Santiago. Ensaísta, romancista e professor, já no limiar de seus 82 anos, Santiago figura como um daqueles escritores que mereceriam, em vida, atenção maior, tanto da mídia quanto da crítica especializada.

Autor nos anos 1970 do ousado romance gay Stella Manhattan, Santiago também experimentara o pós-moderno quando retomou e deu continuidade às memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, na ficção de Em liberdade.

Amigo de infância do produtor musical Ezequiel Neves – desde Minas – e depois do cantor Cazuza – aqui no Rio –, Silviano Santiago escreveria, numa referência ao segundo e como biografia póstuma do primeiro, o emocionante Mil rosas roubadas – que se lê com lágrimas.

Seu mais recente romance intitula-se, simplesmente, Machado.

Laureado com a edição 2017 do Prêmio Jabuti, Silviano faz paralelo, nesse texto, entre a velhice de Machado de Assis e a sua própria solitária velhice, nos lembrando que Machado fora padrinho literário do jovem Mário de Alencar – filho do autor de Iracema – e que ambos tinham uma doença em comum: a epilepsia. A doença, a juventude e a velhice são o mote do romance-biografia-documentário de Silviano Santiago. Com ele ficamos sabendo quem era e onde vivia o famoso médico que tratava o velho Machado e o novo Alencar:

Na sexta-feira (…) ao deixar o consultório (…), Mário de Alencar observa que o motorista do dr. Miguel Couto já tinha estacionado o automóvel estilo cupê à porta do prédio. O médico e a família moram no belo palacete recém-comprado do segundo barão de São Clemente, plantador de café fluminense (…)

Nos inteiramos também da topografia e dos entraves daquela urbanidade recente:

A nova residência do dr. Miguel fica a dois quarteirões da praça José de Alencar, antiga praça Salema. Naquela praça é que, em 1906, o cavalo e a carroça estão sempre atravancados nos trilhos do bonde que vem do largo do Machado e seguem pela rua Senador Vergueiro até a Enseada de Botafogo.

Com a doença do jovem escritor, viajamos nos meios de transporte do tempo:

Mário de Alencar sai de casa de manhã e caminha capengando da perna direita até a esquina da rua Marquês de Olinda com a praia de Botafogo, onde há um ponto de estacionamento de tílburis. Estão em fila. (…) Ao se refestelar na almofada do tílburi que, na manhã de verão, o leva da enseada de Botafogo ao consultório do Dr. Miguel Couto no centro da cidade, Mário de Alencar se ausenta.

Sabemos que, naquele momento, quem vivia na Zona Sul não andava de bonde, pois

Os recém-adquiridos bondes Stephenson são elétricos e substituem os antigos puxados a mula. Todos pertencentes a tradicional Companhia de Bondes de São Cristóvão. Os Stephenson correm pela antiga Zona Norte, bem longe dos novos bairros do Botafogo e do Cosme Velho.

E que Machado morreu de velho, Mário morreu sem cura. E que a solar cidade morre ainda sempre que as chuvas prolongadas de fevereiro a castigam. Motivo da decantada praia ser o veneziano esgoto que hoje é:

À espera do milagre da cura da epilepsia – negada pelas mãos humanas do dr. –, Mário se refugia e se revigora em reflexões alvissareiras. (…) dá dois passos e se aproxima da amurada da varanda. Espreita a rua Marquês de Olinda. É um canal de Veneza que corre entre as residências e deságua na praia de Botafogo.

Lucio Valentim