Arte palavra
A literatura é a mãe de todas as Artes, capaz de erguer mundos apenas pelo artifício da palavra. Nela cabem do paleolítico à guerra de Troia; da morte de Lennon à parafernália tecnológica. Em suma, é arte que – via linguagem – fala da ciência, da história e das demais modalidades da arte. Mas, no entanto, há que se ter cuidados: embora feita apenas de palavras, não é a mera junção destas que faz do simples texto literatura. Na era das fake news e das falsas verdades, havemos – mais do que nunca – de separar o trigo do joio.
Considerando-se o gênero biografia, ou memórias, há que se reconhecer o mérito de Nelson Motta com as palavras – não bastasse o conhecimento in loco de todos os ‘doidões com causa’ que retrata.
Cabe aqui ressaltar o emocionante relato de Vale tudo: o som e a fúria de Tim Maia, ou A primavera do dragão, onde Motta apresenta a impactante saga de Glauber Rocha, desde Vitória da Conquista à conquista de Cannes.
Em Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais, encontra-se, também, boa memória de época.
Com a literatura de Nelson aprendemos, por exemplo, que Os Novos baianos, pós-Bahia, começaram mesmo foi em Botafogo:
Os Novos Baianos moravam em comunidade num amplo apartamento em Botafogo, com suas guitarras, baterias, almas e bagagens. Nos cômodos eles armavam tendas de panos coloridos e cada um tinha sua ‘casa’, cuidava dela, recebia seus amigos, namorava, ficava sozinho.
E sabemos também onde aquela turma de hippies chegada ao Rio ali pelos idos de 1970, já devidamente reforçada com a graça da niteroiense Baby Consuelo, trabalhara para o clássico Acabou Chorare:
Nos estúdios da EMI, em Botafogo, iniciamos os longos e penosos trabalhos de regravação de instrumentos, mixagem e edição necessários para um voo tão alto como um primeiro disco ao vivo (…)
Motta conta que, certa noite, enquanto fumavam baseados e curtiam Hendrix, bateram à porta – grande susto à época da ditadura braba. Sujou! Qual nada. Era apenas o conterrâneo de Galvão, lá de Juazeiro, que aparecia sem avisar:
João Gilberto foi recebido como um Messias no apartamento-comunidade de Botafogo.
E tudo mudou depois que João chegou com todo seu charme baiano e seu violão sincopado – nos lembra Nelson:
O culto a Jimi Hendrix sofreu forte abalo na comunidade de Botafogo naquela noite.
O texto de Noites tropicais retrata eventos importantes à época ocorridos nas imediações do bairro. Não apenas no âmbito da arte musical
No verão de 1975, com sorte, determinação e patrocínio da Souza Cruz, produzi (…) na Rua General Severiano o primeiro Hollywood Rock, finalmente o sonhado festival ao ar livre.
como também na cinematográfica:
Deus e o diabo na terra do sol foi o maior impacto cinematográfico na pré-estreia no cinema Ópera, na praia de Botafogo.
Mas isto já é uma outra história. Em Botafogo, os Novos Baianos criaram Acabou Chorare, considerado um dos maiores discos de todos os tempos