Animal poético

Animal poético

Décadas antes da famigerada geração Coca-Cola, existiu a geração mimeógrafo. E pode-se afirmar – com todo o aval do tempo – que uma vislumbrava o mundo de forma diametralmente oposta à outra. Sim, pois enquanto a segunda se fundou no rastro das contestações dos anos 1960-1970 (liberdade, flower power, paz e amor, hippismo, guerrilha), a primeira ficaria marcada, em linhas gerais, pela alienação que caracterizou os anos 1980-1990 – e jamais soubera sequer reconhecer um mimeógrafo.

Foi no impacto daquele tempo utópico que jovens praticavam poesia aos montes pela cidade. Ali pelos anos 1970, para além da praia, para além do píer de Ipanema, muito além da oficialidade editorial – e paralelamente aos movimentos políticos e à luta armada –, literalmente se vociferavam versos pelas ruas. Versos rabiscados e mimeografados.

Tão contundente foi essa produção literária – em quantidade e qualidade – que muitos daqueles poetas ambulantes chamaram a atenção da também jovem ensaísta Heloísa Buarque de Hollanda. E foram, alguns, parar em antológica coletânea, denominada 26 poetas hoje.

Rolava então o ano de 1976.

Já na apresentação Heloísa advertia:

Curiosamente, hoje, o artigo do dia é poesia. Nos bares da moda, nas portas de teatro, nos lançamentos, livrinhos circulam e se esgotam com rapidez. Alguns são mimeografados, outros, em offset (…) Trata-se de um movimento literário ou de mais uma moda?

Desta geração, apelidada “poesia marginal”, emergiram nomes que hoje ocupam cadeira na Academia Brasileira de Letras, como Antonio Carlos Secchin e Geraldinho Carneiro; outros que não vestiram o fardão, mas alcançaram certo reconhecimento lítero-musical, como Ana Cristina César, Cacaso, Bernardo Vilhena, Capinam, Torquato e Waly; e outros para os quais o mimeógrafo – e o apelido – ainda são estigma.

É o caso de Chacal. Voz quase esquecida – e que nos 1970 vociferou um dos textos mais enigmáticos do tempo, Quampérios –, o “animal poético” habita hoje os tênues limites entre Botafogo e Humaitá.

Fundador do Centro Cultural CEP 20.000, Chacal mimeografaria um dia numa de suas trips pela cidade:

o lotação passa batido
pela haddock lobo pelo estácio
desfila veloz pela riachuelo
pelo passeio passa apressado
glória flamengo botafogo humaitá:
é dia de CEP

E jamais deixaria de registrar, em seu trânsito rumo ao CEP, o bairro de Botafogo e suas transições ao longo das décadas, como no poema “Pello menos”

nova unidade em depilação
cabines individuais
cera exclusiva
voluntários da pátria, 470
botafogo

ou nesse fragmento do épico personagem Quampérios:(…) fumando guimba de charuto, com um gibão amarrado no pescoço, cantando uma sinfonia inacabada. Entrou nas sendas de botafogo pra saciar sua fome semestral (…)

Lucio Valentim