Águia de Haia

Águia de Haia

Foi em Botafogo que Rui Barbosa preparou-se para chefiar a delegação brasileira que participaria, entre os dias 15 de junho e 18 de outubro de 1907, da 2ª Conferência da Paz, em Haia, Países Baixos. Na biblioteca de sua casa, na rua São Clemente 134, o jurista, advogado, político, escritor, filólogo, jornalista, tradutor e diplomata se debruçou nos estudos de direito internacional para a difícil tarefa que lhe fora confiada pelo presidente da República Afonso Pena, por sugestão do chanceler José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco. Ele e o Barão sabiam que a conferência seria um jogo de cartas marcadas para favorecer as grandes potências militares da época. Entretanto, a habilidade de orador e a atuação incansável de Rui – alimentada por intensa troca de telegramas com o Barão – levaram o Brasil a obter uma posição de destaque na conferência e lançaram as bases para uma mudança de paradigma nas relações internacionais. Por sua atuação, Rui ganhou o epíteto de “Águia de Haia”.

A 2ª Conferência de Paz de 1907, a primeira com todas as nações soberanas à época*, teve como principal assunto uma “proposta-surpresa” dos Estados Unidos – articulada com a Alemanha e o Reino Unido – de criar uma Corte Internacional de Justiça composta por juízes permanentes nomeados por oito a nove potências – Estados Unidos e alguns países europeus –, enquanto os sete ou oito postos restantes seriam ocupados por outros países, em sistema de rodízio. Segundo a proposta, as nações poderosas teriam a imensa maioria dos juízes a seu favor em qualquer disputa internacional. O Brasil, outros países da América Latina e alguns europeus e asiáticos foram contra. Como a proposta pegou todos de surpresa, tiveram de montar suas estratégias, reações e propostas alternativas ao longo da conferência.

Ao tomar conhecimento da proposta norte-americana, o Barão orientou Rui a buscar protagonismo do Brasil:

(…) “Vossa Excelência deve procurar proceder de modo a que nenhum outro país do nosso ou de outro continente nos preceda nas declarações que a nossa dignidade de nação nos impõe e que apresente logo a proposta substitutiva de acordo com as nossas ideias (…) tomar a dianteira, construir liderança serena, coerente com a nossa dignidade de nação. (…) Estamos certos de que Vossa Excelência o há de fazer com firmeza e moderação e brilho, atraindo para o nosso país as simpatias dos povos fracos e o respeito dos fortes”.

E, de fato, Rui foi brilhante, desmontando, uma a uma, as teses da delegação norte-americana e, ao mesmo tempo, atraindo simpatias de outras nações para a posição do Brasil. Ele defendeu a igualdade dos Estados, no âmbito do direito internacional, em oposição à hierarquia baseada na força, preconizada pelas grandes potências. Paul-Henri-Benjamin d’Estournelles de Constant – jurista, diplomata e político, representante da delegação francesa – saudou o sucesso de Rui:

“Vossa Excelência logrou colocar em evidência seu país e tornar aceitável o princípio da igualdade entre os Estados, que inicialmente nos parecia revolucionário, ridículo”.

Correspondência entre o Rio Branco e Rui Barbosa

Da chancelaria no Rio de Janeiro, o Barão se correspondia com Rui por meio de telegramas. Foram cerca de 150, de parte a parte, durante os cinco meses que durou a conferência. Em geral, a correspondência era amistosa e colaborativa. Houve, no entanto, momentos de tensão, em que Rui esteve a ponto de desistir, como no telegrama de 16 de agosto:

(…) Censuras mencionadas telegrama Vossa Excelência só me fazem lamentar mais uma vez aceitasse missão para qual sempre proclamei minha incompetência (…) renovo suplicante meu pedido exoneração.

O Barão respondeu tranquilizando o representante brasileiro:

“Conheço perfeitamente as dificuldades da nossa situação aí (…) Para a gente sensata e imparcial, a grande e merecida nomeada do representante do Brasil na Haia nada perderá se não conseguir tudo quanto desejamos. O governo e a nação fazem plena justiça aos esforços de Vossa Excelência. Há mesmo em todo o país um movimento geral de satisfação e entusiasmo pelo brilho que Vossa Excelência tem dado à nossa terra nessa conferência (…)

Ao fim da 2ª Conferência de Paz de Haia, os norte-americanos ficaram isolados. Foi aceita a proposta do representante inglês Sir Edward Fry, de adiar a decisão sobre o processo de seleção dos juízes da corte internacional para uma futura conferência. O Brasil, por meio do Barão e de Rui, ganhou prestígio, introduzindo, nas relações internacionais, a noção de igualdade entre estados soberanos, conceito posteriormente consagrado na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Desde então, esse princípio serve de norte para a atuação da diplomacia brasileira, que construiu, ao longo de todo o século 20, uma boa reputação como soft power. E como disse o próprio Rui: “Mais do que nunca, em nossos dias, os povos subsistem da sua reputação no exterior”.

Foto: Ivo Gonzalez

No jardim em frente à casa de Rui Barbosa, existe uma escultura de uma águia dominando uma serpente, que simboliza a vitória da sabedoria sobre a morte. O curioso é que a escultura já existia em 1893, quando Rui comprou a casa, bem antes de receber a alcunha de “Águia de Haia”. Ele pensou em mandar retirá-la, mas foi desaconselhado. Afinal, se a escultura da águia derrotando a serpente fora apenas coincidência, mal não faria deixá-la no jardim a lembrar o feito.

* Alemanha, Argentina, Áustria-Hungria, Bélgica, Bolívia, Brasil, Bulgária, Chile, China, Colômbia, Cuba, Dinamarca, Equador, Espanha, EUA, França, Grécia, Guatemala, Haiti, Itália, Japão, Luxemburgo, México, Montenegro, Nicarágua, Noruega, Países Baixos, Panamá, Paraguai, Peru, Pérsia, Portugal, Reino Unido, República Dominicana, Romênia, Salvador, Sérvia, Sião, Suécia, Suíça, Turquia, Uruguai e Venezuela.

Fontes de pesquisa:

FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO (FUNAG), II CONFERÊNCIA DA PAZ HAIA, 1907 – A correspondência telegráfica entre o Barão do Rio Branco e Rui Barbosa, 2014

LAFER, Celso, CONFERÊNCIAS DA PAZ DE HAIA (1899 e 1907).

Antonio Augusto Brito