Tráfico de escravos em Botafogo

Tráfico de escravos em Botafogo

Após a proibição do comércio de escravos – definida no tratado de 1826 entre Brasil e Inglaterra –, a Praia de Botafogo tornou-se um dos pontos de receptação de africanos contrabandeados, que, muitas vezes, eram trocados por sacas de café.

Vem dessa época a expressão “pra inglês ver”, pois traficantes – com a vista grossa dos políticos, do Judiciário, das autoridades e das indústrias que utilizavam mão de obra escrava – ignoravam a proibição. Por outro lado, os britânicos, cansados de serem ludibriados, passaram a abordar e a apreender embarcações suspeitas no interior dos portos e nas praias do Rio de Janeiro, o que violava a soberania do país.

Em 1817, havia sido criada uma comissão mista anglo-brasileira para resolver disputas judiciais entre cidadãos dos dois países. Pelo lado britânico, Frederick Grigg, morador de Botafogo, era um dos membros da comissão.

Em 1836, Mr. Grigg relatou ao seu governo que, em setembro daquele ano, cerca de 30 a 40 negros escravizados haviam sido encontrados pela polícia local lavando-se em uma praia próxima à Fortaleza de São João. E que, ao se aproximarem, os soldados foram recebidos a bala pelos traficantes – bem mais numerosos – e obrigados a fugir para os lados de Botafogo, trazendo apenas alguns poucos africanos que conseguiram resgatar.

A comissão mista era um verdadeiro cabo de guerra: enquanto os comissários Grigg e John Samo autorizavam o apresamento das embarcações suspeitas, representantes brasileiros protestavam, absolviam os acusados e, não raramente, estimulavam pedidos de indenização.

Foi o caso do barco “Dous amigos”.

Na manhã do dia 14 de junho de 1843, o cruzador britânico Curlew, com 10 bocas de canhão, entrou na Enseada de Botafogo visando a um barco suspeito ancorado perto da praia. O comandante John Foote enviou um bote com homens armados para abordar e capturar o Dous Amigos, equipado para o tráfico de escravos. Com a aproximação do bote, o capitão do barco Jacob Maurity e sua tripulação fugiram.

O comerciante José Bernardino de Sá, proprietário do Dous Amigos, levou mais de três meses para reclamar o barco – àquela altura resumido a restos do casco – e seus pertences. Ele entrou com um pedido de indenização por danos materiais e lucro cessante. Segundo alegou, o barco tinha como destino o porto de Cotinguiba, em Sergipe. Os comissários do lado brasileiro deram ganho de causa ao comerciante, mas Grigg e Samo indeferiram o pleito. Segundo eles, as “provas” apresentadas eram claramente forjadas ou não tinham valor legal. 

A comissão mista era palco de embates constantes. Grigg e Samo denunciavam as péssimas condições em que se encontravam os africanos livres que trabalhavam nas obras da prisão correcional, em situação pior do que a de condenados. Os brasileiros respondiam que o operariado inglês – assalariado e livre, mas sem direitos sociais – não gozava de tanta liberdade como os africanos livres.

É possível que ambas as partes tivessem razão. Se navios britânicos perseguiam barcos de traficantes de escravos “por razões humanitárias”, a Grã-Bretanha, nova dona dos mares, explorava a maior parte das colônias no continente africano. Apesar das leis criadas para coibir o tráfico e do empenho dos representantes ingleses, mais de 120 mil africanos foram introduzidos ilegalmente no país entre 1830 e 1850. Em 1888, quando foi abolida a escravidão, os velhos senhores de escravos ainda se acharam no direito de exigir indenizações ao governo brasileiro. Esse problema foi resolvido por Rui Barbosa, quando ministro da Fazenda do primeiro governo republicano. O advogado residente em Botafogo mandou queimar todos os registros relativos ao comércio de escravos. Ninguém recebeu indenização. Em compensação, perdeu-se o registro histórico de uma ignomínia. Por sorte, ainda podemos contar, como fontes de pesquisa, com relatos precisos dos burocratas ingleses, que eram chamados pelos escravocratas genericamente de “malditos ingleses”.

Antonio Augusto Brito