Uma igreja, dois santos e muita história

Uma igreja, dois santos e muita história

A Christ Church, igreja anglicana localizada no número 99 da rua Real Grandeza, guarda relíquias de mais de 800 anos, desde que foi fundada em 1819, quando Dom João VI, do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves; e Jorge III, do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda, eram aliados contra Napoleão Bonaparte. O projeto da igreja anglicana sofreu forte oposição da então absoluta Igreja Católica, mas prevaleceu o tratado firmado entre as duas nações em 1810, que garantia a cidadãos britânicos no Brasil, entre outros direitos, o de liberdade religiosa.

A entrada da Christ Church é ladeada por esculturas de São Jorge da Capadócia e São João Batista, santos aos quais a igreja foi dedicada, em homenagem aos reis Jorge III e Dom João VI. No início do século 19, o regente português recusou-se a boicotar a Grã-Bretanha – aliada histórica de Portugal –, conforme exigia Napoleão.  Por esse motivo, ante a iminência de uma invasão daquele país por tropas de Bonaparte, Dom João VI veio parar no Brasil em 1808, com boa parte da corte, sob escolta de uma esquadra britânica.

Foi assim que o Brasil deixou de ser uma mera colônia extrativista, e o Rio de Janeiro ganhou status de capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Dois anos depois, Portugal e Grã-Bretanha assinaram um tratado de comércio, que, em seu artigo 12, dizia:

“Sua Alteza Real, o Príncipe Regente de Portugal declara e se obriga no seu próprio nome e no de seus herdeiros e sucessores a que os vassalos de Sua Majestade Britânica residentes nos seus Territórios e Domínios não serão ou perturbados, inquietados, perseguidos ou molestados por causa de sua Religião, mas antes terão a perfeita liberdade de consciência e licença para assistirem e celebrarem o serviço divino em honra de Todo Poderoso Deus, quer seja dentro de suas casas particulares, quer nas particulares Igrejas e Capelas que Sua Alteza Real agora e para sempre graciosamente lhes concede a permissão de edificarem e manterem dentro de seus domínios (…)”

Como concessão política à poderosa Igreja Católica, havia algumas ressalvas:

(…) “contanto que as sobreditas capelas sejam construídas de tal maneira que exteriormente se assemelhem a casas de habitação e também o uso de sinos não lhes seja permitido”.

Em outras palavras, estava autorizada a construção da igreja anglicana, desde que ela não se parecesse com uma igreja e que nela não houvesse sinos para atrair novos fiéis.

Vá se queixar com a mãe do bispo!

A primeira sede da Christ Church – na rua dos Barbonos, atual Evaristo da Veiga, no Centro – não vingou. Pudera, diriam os supersticiosos. Ela foi construída sobre terreno da antiga residência de D. Ana, poderosa mãe de D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castello Branco, bispo do Rio de Janeiro de 1773 a 1805. Católica fervorosa e muito poderosa, D. Ana mandava e desmandava a ponto de algum gaiato inventar a expressão “não gostou, vá se queixar à mãe do bispo!”. A alma de D. Ana não deve ter gostado de uma igreja anglicana erigida em pleno “Largo da Mãe do Bispo”.

Somente com a chegada da República, foram eliminadas as restrições. A igreja foi reformada entre 1898 e 1899; ganhou uma torre, fachada e janelas estilo gótico; e permaneceu no mesmo endereço até 1944, quando foi realizada a primeira cerimônia religiosa na nova igreja, em Botafogo, em um terreno comprado à Coroa Britânica. Da velha igreja do Centro, foram trazidos para Botafogo os vitrais retratando São Jorge (padroeiro da Inglaterra), São Sebastião (padroeiro da cidade do Rio de Janeiro), a Virgem Maria e São João Batista; e peças com mais de 800 anos que foram doadas pela Catedral de Winchester, em 1917: cruz, castiçais do altar e entalhes em carvalho. Além das já mencionadas esculturas de São Jorge e São João Batista.

Passados 200 anos de sua fundação, a Christ Church está completamente inserida na comunidade do Rio de Janeiro. Realiza diversas ações sociais, como “Casa de Maria e Martha”, para crianças da Comunidade Santa Marta; “São Martinho”, para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade; “Projeto Ester”, para adictos; “Street Church”, para moradores de rua; e “Chega Junto”, evento gastronômico para refugiados, promovido em parceria com a instituição católica Cáritas RJ.

Quanto a São João Batista e São Jorge, os dois são santos muito populares no Rio de Janeiro. Em Botafogo, São João Batista dá nome a uma igreja, ao cemitério e a uma rua. Já São Jorge é tão popular que seu dia virou feriado no Estado do Rio. O santo guerreiro é venerado, inclusive, pela umbanda, que o associa a Ogum, orixá guerreiro.

Tombada pelo patrimônio histórico e cultural da Cidade do Rio de Janeiro, a Christ Church foi testemunha do nascimento do Brasil enquanto nação e de um passado de intolerância religiosa que anglicanos, católicos, umbandistas e adeptos de outras religiões devem lutar para que não volte a nos assombrar.

Fonte: “A Short History of Christ Church”

Antonio Augusto Brito