Cinema, colagem e afetos
O acaso, o inesperado, e de repente, a vida muda completamente. Foi assim com Carlos Vinicius Borges, mais conhecido como Cavi. Inesperadamente, por acaso, o judoca virou empreendedor, cineasta, ativista cultural, produtor, que hoje organiza eventos do grupo Estação NET de Cinema, tanto no Estação NET Botafogo, quanto no NET Rio, onde tem uma lojinha que vende artigos ligados à sétima arte. Um cara aberto a oportunidades e afetos.
Foi assim: em 1996, Cavi tinha 18 anos e preparava-se para disputar sua primeira olimpíada pela equipe brasileira de judô, em Atlanta, EUA. Campeão brasileiro aos 11 anos, ele era uma das grandes promessas do esporte que sempre garantiu medalhas olímpicas para o país. Só que uma contusão, às vésperas da competição, acabou adiando o sonho olímpico e mudou a história do jovem judoca.
Depois de alguns meses trancado em casa, frustrado e abatido, Cavi resolveu aceitar a oferta para explorar uma lojinha da mãe, no segundo andar da Cobal–Humaitá. “Você administra a loja e vende lá as suas coisas”. A mãe já conhecia o espírito empreendedor do filho, que, sem patrocinador, costumava bancar as viagens para torneios internacionais vendendo quimonos de judô, camisetas e vídeos de luta.
“Por que você não abre uma locadora com filmes de lutas? Não existe ninguém que alugue esse tipo de filme”, sugeriu um professor de judô. Era isso: alugar filmes de luta e vender quimonos!
“Vai ter filme de Fellini?”
A falta de grana para pagar um despachante acabou sendo positiva. Por sorte, o alvará demorou a sair, tempo suficiente para Cavi perceber que precisava fazer ajustes em seus planos. A Cobal era frequentada por diretores de cinema, produtores, atores e estudantes universitários. Logo, seus futuros clientes em potencial estavam mais interessados em filmes de arte. “As pessoas perguntavam: vai ter filme de Fellini? Eu – que só gostava de Rambo, Schwarzenegger, Karatê Kid e filmes blockbusters – comecei a conhecer cinema pelos clientes da locadora”. E foram eles também que escolheram o nome “Cavídeo”, inaugurada em julho de 1997.
Como havia muita competição na região, a Cavídeo foi atrás de diferenciais. Além de oferecer filmes de arte – que Cavi comprava nas viagens internacionais –, era a única locadora a abrir aos domingos, justamente o pior dia da programação de TV, e também a única a ficar aberta até cinco da manhã, aproveitando o movimento e a segurança da Cobal.
Para aumentar as vendas, Cavi teve a ideia de promover eventos numa sala ao lado da locadora, que tinha tela, cadeiras e um pequeno palco. “As pessoas iam aos eventos e depois passavam na locadora”. Quando o cineasta Stanley Kubrick morreu, em 1999, Cavi criou uma mostra de filmes inéditos do diretor, aproveitando os curtas de Kubrick que só ele tinha. Uma amiga ofereceu-se para divulgar, e o evento atraiu 700 pessoas. “Como a sala tinha apenas 50 lugares, tive de fazer sessões de manhã até de noite, sexta, sábado e domingo”, lembra Cavi, que começou a organizar mostras uma vez por mês: Luis Buñuel – fase mexicana, encontro de fãs do “Arquivo X”, animação japonesa, Conselho Jedi do Rio de Janeiro, fã-clube do Harry Potter… A história do judoca que virou dono de locadora de filmes de arte virou matéria de capa do Segundo Caderno, do jornal O Globo. Cavi Borges ficou conhecido, os eventos lotavam, e a locadora bombava.
Em troca de divulgação, Cavi emprestava seu projetor de vídeo para eventos culturais, como peças de teatro e saraus de poesia. “Eu tinha de ir aos eventos para ligar o projetor, tomar conta, e acabava participando. Eu, que achava poesia chata pra caramba, comecei a gostar. Achava teatro insuportável e comecei a ver que não era tão chato assim. Fui me formando culturalmente naqueles eventos que eu patrocinava”.
Àquela altura, já não havia muito espaço para o judô, que Cavi ainda tentou conciliar, por um tempo, com as atividades empresariais, até que uma nova contusão, em 2000, fez com que ele pendurasse o quimono definitivamente.
Mais de 350 filmes em 25 anos
Cavi fez amigos no cinema e começou a visitar sets de filmagens e ajudar nas produções. “Eu conseguia comida na Cobal para a equipe de filmagem; emprestava uma câmera digital, que havia trazido do Japão, e liberava filmes de graça em troca de a Cavídeo aparecer nos créditos dos filmes. Quando me dei conta, estava produzindo. Aí pensei: quero fazer um filme também”.
Na locadora, Cavi conheceu atores do grupo de teatro Nós do Morro, do Vidigal, na zona sul do Rio. Daquele encontro, surgiram os primeiros filmes produzidos pela Cavídeo. “Eles eram ótimos roteiristas, excelentes atores, mas péssimos produtores, e eu era um ótimo produtor, péssimo roteirista e não conhecia nenhum ator. Quando a gente se juntou, nossos pontos fortes se complementaram, e a gente começou a fazer cinema”. Foi então que a loja da família na Cobal passou a abrigar a produtora, e ele alugou uma outra no térreo para a locadora.
Aproveitando os baixos custos da tecnologia digital, Cavi começou a produzir um filme atrás do outro com parceiros de grupos de favela. Além do Nós do Morro, veio o pessoal da Cidade de Deus, da Zona Oeste, e a Central Única das Favelas (Cufa), da Zona Norte. Era hora de se dedicar à carreira de cineasta.
“Sou meio compulsivo, e a Cavídeo deve ser a produtora que mais filmes fez no Brasil. São mais de 350 filmes – 250 filmes produzidos e 110 dirigidos, entre curta, média e longa-metragem, videoclipes, videoarte, webseries e séries – em 25 anos. O segredo são as parcerias. Em geral, o produtor é aquele sujeito que tenta conseguir dinheiro. Como eu nunca consigo dinheiro, consigo parceiros, só que tenho muitos parceiros: equipamentos de filmagem, atores, finalização, cinemas para exibir os filmes. Consigo fazer um filme, que custaria um milhão de reais, por cem mil reais. É uma coisa meio utópica – um ajuda o outro –, mas funciona. No esquema convencional, se eu quisesse fazer uma mostra, eu teria de botar num edital. É muita burocracia. Eu consigo ter uma ideia hoje e começar a fazer um filme em um mês. Ninguém faz isso. O processo normal para se fazer um filme leva cinco anos. Em vez de esperar cinco anos pra fazer um filme, eu prefiro fazer cinco – ou mais – filmes por ano”. Para se profissionalizar, Cavi, que havia se formado em Economia pela UFRJ – um pedido da mãe, que desejava para ele uma profissão “estável” –, resolveu estudar cinema na Universidade Estácio de Sá.
Cavi no cinema
Um dos principais produtores do cinema independente brasileiro contemporâneo, Cavi contribuiu para relançar carreiras de cineastas autorais do passado, como Luiz Rosemberg Filho –“Dois casamentos” (2014) e “Guerra do Paraguay” (2015) – e Sérgio Ricardo – em “Bandeira de retalhos” (2017). Ainda como produtor, apoiou projetos de baixo orçamento tanto de cineastas estreantes, quanto de nomes consagrados como Luiz Carlos Lacerda – “Casa 9” (2011) e “A mulher de longe” (2012).
Seu primeiro longa-metragem como diretor, em parceria com Pedro Monteiro, foi “Vida de balconista”, que nasceu como série de filmes para celular, virou série na Internet, migrou para a televisão e transformou-se em seu primeiro longa-metragem. Entre sua obra como diretor, há ainda filmes como “Cidade de Deus – 10 anos depois” (2013), codirigido com Luciano Vidigal; “Funk Brasil – 5 visões do batidão” (2015), com Luciano Vidigal, Rodrigo Felha, Christian Caselli, Julio Pecly, Marcelo Gularte e Paulo Silva; “Rosemberg – cinema, colagem e afetos” (2017), com Christian Caselli; e o curta-metragem “A distração de Ivan” (2009), com Gustavo Melo, selecionado para a Semana da Crítica do Festival de Cannes de 2010.
Cavídeo e Grupo Estação de Cinema
Os eventos de cinema – na Cobal, no Tempo Glauber, no Espaço Cultural Sérgio Porto – haviam crescido tanto que, em 2017, Cavi procurou o Grupo Estação de Cinema para propor uma parceria. A Cavídeo ocuparia uma sala desativada do Estação Botafogo – a sala 4 – com uma programação de teatro e cineclube, não cobraria entrada, mas ganharia dinheiro vendendo DVDs e camisetas. “O sonho de qualquer um que trabalhe com cinema é fazer eventos no Estação. Durante dois anos, a gente teve, na menor sala do grupo, a maior programação, totalmente underground, só com evento maluco, de graça, à meia-noite”.
Quando veio a pandemia de Covid-19, em 2020, o empresário não conseguiu mais manter o aluguel da loja na Cobal e esteve a ponto de liquidar com o acervo. “Seria uma pena, porque eu passei 20 anos garimpando filmes”. Até que Marcelo Mendes, ex-dono do Grupo Estação de Cinema, ofereceu uma sala para a produtora Cavídeo na sede da Rio Filme, empresa pública municipal de apoio ao audiovisual, no Centro Cultural Casas Casadas, em Laranjeiras. Em troca, Cavi não cobraria pelos filmes. A locadora virou biblioteca de cinema e endereço da produtora.
Também em dificuldades por causa da pandemia, Adriana Rattes, uma das sócias do Grupo Estação, convidou Cavi a participar de uma campanha de financiamento coletivo para poder pagar as despesas dos cinemas e os salários dos funcionários. Ao final, a campanha arrecadou R$ 700 mil. “Aí, ela me ofereceu a loja do Estação NET Rio para eu explorar do jeito que quisesse, mas avisou: ‘está arriscado a você vir para cá e ter de fechar porque acabamos de receber uma ordem de despejo’. Foi então que partimos para a luta. No dia 12 de novembro, meu aniversário, eu planejava fazer um evento, que acabou virando a manifestação #FICAESTACAONETRIO. A partir daquele dia, propus uma ocupação. Todo dia, faria um evento no Estação, que poderia ser poesia, performance, teatro, shows, lançamento de livros, cineclube… O importante era ocupar. Adriana concordou: ‘Cavi, faz o que você quiser, desde que você traga gente pra cá’. Teve até luta de judô entre Cavi e Thierry Fremaux, diretor do Festival de Cinema de Cannes, quando Fremaux, ex-judoca assim como Cavi, veio ao Rio para lançar seu livro “Judoca”. “Montei um tatame no saguão do Estação NET Rio, chamei os alunos de judô da Rocinha e fiz uma homenagem. Botei meu quimono, lutei com ele, o cara mais requisitado do mundo de cinema. Tem vídeo em que dou um ippon nele”, diverte-se Cavi. “Os eventos são um sucesso e começaram a atrair um público jovem – de 13 a 20 anos – que não frequentava salas de cinema. Se as salas continuam vazias durante o dia, as mostras e os eventos acabam equilibrando”.
Cavi Borges mora em Laranjeiras, mas tem uma longa história no bairro de Botafogo: “Botafogo é a minha segunda casa. Cheguei a ter 35 mil clientes cadastrados na Cavídeo e todo dia estou no Estação. São duas marcas que todo mundo em Botafogo conhece”. Hoje Cavi pode dizer que vive de cinema. Mas, para isso, ele precisa fazer muitas coisas ao mesmo tempo. “Sou uma pessoa muito aberta a possibilidades, vou abraçando as oportunidades e as coisas vão acontecendo. E dá certo. Invento formas de ganhar dinheiro: faço filmes, mas eles não pagam minhas contas porque demoram a acontecer; tenho a Estação Cavídeo, loja de cinema no Estação NET Rio com produtos doados; dou aulas; crio cursos; sou curador de um cinema de Maricá; monto barraquinha à meia-noite pra vender DVD… Nunca deixei de fazer nada por falta de dinheiro”, explica Cavi, que, certamente, seguirá escrevendo novos capítulos de sua história no bairro.
Fotos: Acervo Cavi Borges