Amor mendigo
No Brasil, adquire consagração literária não necessariamente aquele que se imortaliza ocupando cadeira na Academia Brasileira de Letras, mas o que inicia carreira ganhando o prêmio Jabuti.
Maior premiação literária do país, o Jabuti é editado há quase 60 anos, sendo Dalton Trevisan um de seus primeiros laureados. Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, Chico Buarque de Holanda e Ignácio de Loyola Brandão, entre vários outros, também dele tiraram proveito.
E assim foi com praticamente todos os autores brasileiros, desde a criação do famigerado galardão literário.
A fúria do corpo, como o próprio título indica, é um rompante de brutal sensualidade, em que o gaúcho João Gilberto Noll – ganhador de cinco Jabutis – caprichara na descrição poética das cenas de forte paixão pelas praças públicas do Rio de Janeiro – cidade que escolhera para escrever alguns de seus mais importantes romances:
“O Cego e a Dançarina saiu de um fôlego só. Eu o escrevi como um livro de contos, não eram histórias esparsas que eu já tinha. Aproveitei uma época em que estava desempregado, e morava no Rio de Janeiro, e me fechei para escrever.”
Noll, que um dia dissera:
“Minha literatura cultiva as forças excretoras do corpo. A urina. O esperma. Os fluxos menstruais. A própria merda. Nesse sentido, faço uma literatura muito materialista.”,
em A fúria do corpo – publicado quando já famoso pelo primeiro Jabuti –, utilizaria como cenário perfeito o Rio do glamour e do concreto, da droga, da prostituição, do carnaval, do michê, do homossexual e do Esquadrão da Morte, para expor mais uma vez seu protagonista sem nome:
“Eu quero falar de todo mundo e ninguém através desse meu protagonista que é sempre o mesmo homem. Ele vai continuar comigo. Ele habita em mim. Se ele se for, eu vou junto.”
Agora desocupado, maltrapilho e transfigurado em mendigo, o personagem de Noll iria experimentar uma vida encardida, envolvido em angustiante e promíscuo conluio da carne com uma puta-mendiga chamada Afrodite. Mais tarde, o premiado autor de O quieto animal da esquina, que vivera no Rio por 22 anos – e que morrera em Porto Alegre em março, aos 71 –, reconheceria:
“Trato de mendigos, mas não estou interessado em documentar ou usar a mendicância carioca, (…). A mendicância ali é simbólica, é a depauperação humana e a necessidade de suplantá-la através de um laço amoroso, que é conseguido, porque o romance tem final feliz.”
Neste seu segundo romance, Noll conferiu, com predisposição metafísica, luxo à miséria do amor, que bundeia – mas se lava – no infernal paraíso que permeia as orlas de Copa e Botafogo:
“A fúria do corpo é um livro amorosamente muito bem-sucedido. É uma história de amor. Um casal de mendigos termina sob um chafariz na praia de Botafogo – um chafariz que existe mesmo –, brincando, em pleno jardim edênico.”