Existirmos
Assim como os seres e as coisas, as palavras também vão e vêm.
Outro dia, um jovem de vinte anos dizia não saber o significado da palavra estafa. E sequer tê-la um dia ouvido na vida.
Houve um tempo em que se poderia estar estafado e cair numa fossa irreversível. Mais ou menos o equivalente hoje ao que chamaríamos de estresse seguido de depressão.
Embora naquela tarde de novembro, aos 28 do primeiro tempo, o local escolhido por Torquato Neto “pra dizer adeus” à vida tenha sido o bairro da Usina, ao chegar no Rio, adolescente ainda, o autor de Mamãe Coragem se instalaria em Botafogo.
Primeiro na Praia, nº 356, endereço já agitado à época – num edifício que durante anos se chamou Rajah. E depois no Solar da Fossa.
Um poeta da época dizia: “Não se sabe como, nem por que, em algum momento de 1966, várias pessoas interessantes resolveram morar no mesmo lugar. E havia espaço para todas”.
A despeito do nome, no Solar da Fossa cultivava-se, sobretudo, o sonho, fazendo da Arte forma de resistência política, naqueles anos de chumbo da repressão militar.
O Solar era um desses casarões coloniais de Botafogo, de 85 apartamentos, espécie de cortiço de artistas em começo. Foi onde Torquato Neto coexistiria com Paulinho da Viola, José Wilker, Darlene Glória, Cristóvam Buarque, Ruy Castro, Paulo Leminski, Moraes Moreira, Cláudio Marzo, Gilberto Gil, Betty Faria, Abel Silva, Gal, Paulo Coelho, Naná Vasconcelos. E Sá, Rodrix e Guarabyra. A nata da época, enfim.
Caetano Veloso morava ali também. De onde saíam a pé pelo Túnel da Princesa Isabel rumo ao Cervantes. Iam todos esticar o papo ao sabor dos sandubas cervantinos – antídoto perfeito para os efeitos colaterais daquilo que foi cultivado, consumido e registrado em códigos nos versos psicodélicos de Panis et circenses. E eternizado no som dos Mutantes:
“Mandei plantar folhas de sonhos no jardim do Solar
As folhas sabem procurar pelo sol…”
O maior templo da contracultura carioca foi demolido no ano de 1971, para paradoxalmente dar vez ao primeiríssimo, e monumental, Centro de consumismo de Botafogo: o Riosul Shopping Center.
Torquato Neto, já não mais no bairro, já não mais curtindo o sonho e o som de uma época, também se despediria no ano seguinte – já cansado, estafado, estressado de tudo – “pra não (mais) voltar”.
Décadas depois, outros versos – outras palavras – questionariam, com toda a dramaticidade poética da nebulosa de gases que extinguiu o Solar e o poeta, a existência tênue dos seres e das coisas: “a que será que se destina?”