O combate da rua da Passagem
Botafogo foi palco de uma das maiores batalhas contra a campanha da vacinação obrigatória, promovida por Oswaldo Cruz, que morava no bairro.
Na noite do dia 14 de novembro de 1904, a poucas horas das comemorações da proclamação da República, o senador Lauro Sodré, o deputado Alfredo Varella e o general Silvestre Travassos entraram na Escola Militar, então localizada na Praia Vermelha. Deram voz de prisão ao comandante da escola e conclamaram os cadetes a seguirem as ordens do general Travassos, autodeclarado chefe do movimento revolucionário que tinha como objetivo derrubar o presidente da República Rodrigues Alves.
Por volta das 23 horas, 300 cadetes comandados por Travassos puseram-se em marcha transportando um canhão. Na altura do hospício – antigo Dom Pedro II, hoje Escola de Comunicação da UFRJ –, receberam o reforço de um esquadrão do Primeiro Regimento de Cavalaria e, na rua General Severiano, de uma companhia de infantaria. Seguiram todos pela rua da Passagem.
O plano da liderança dos revoltosos era rumar para o Palácio do Catete, mas o governo, informado dos acontecimentos, já havia preparado uma contraofensiva. Perto da rua General Polidoro, as tropas do general Travassos deram de cara com um regimento de infantaria comandado pelo general Antônio Carlos de Piragibe, piquetes de cavalaria e soldados da Força Pública.
Os dois lados abriram fogo no escuro – lampiões haviam sido quebrados –, e houve baixas de parte a parte no confronto que ficou conhecido como o Combate da Rua da Passagem. Entre os feridos graves, estavam o general Travassos – que morreria dias mais tarde – e o senador Lauro Sodré. Os dois lados recuaram, e os cadetes retornaram à Praia Vermelha. Ainda naquela madrugada, o encouraçado Deodoro e lanchas torpedeiras abriram fogo contra a Escola Militar, onde os amotinados se encastelavam. Pela manhã, os cadetes finalmente se renderam.
A poucos metros do local do confronto – na rua Voluntários da Pátria 128 –, morava o cientista, médico e sanitarista Oswaldo Cruz. Seu trabalho à frente da campanha de vacinação compulsória – extremamente impopular – havia sido utilizado como pretexto pelos golpistas.
O jovem cientista era diretor do Instituto Soroterápico Federal – atual Instituto Oswaldo Cruz –, que ajudou a projetar. Ele havia sido nomeado por Rodrigues Alves para a Diretoria Geral de Saúde Pública, com a missão de combater as três principais doenças que, todo ano, assolavam o Rio de Janeiro: febre amarela, peste bubônica e varíola. A Capital Federal tinha fama de túmulo de estrangeiros, tal a quantidade de vítimas fatais das epidemias. Muitos navios europeus preferiam evitar o porto do Rio, seguindo viagem até Buenos Aires.
Oswaldo Cruz sabia que a febre amarela era transmitida pela picada do mosquito Aedes Aegypti, que depositava larvas em poças de água parada. Ele também sabia que a forma de combater a doença era eliminar esses focos. Assim, enquanto o prefeito Pereira Passos – com sua política de demolições chamada de “bota-abaixo” – reurbanizava a cidade, construindo avenidas e removendo moradias insalubres, Oswaldo Cruz saía em campo com sua equipe de mata-mosquitos. Eles percorriam quintais, jardins, sótãos e porões, aplicando inseticidas. Lacravam caixas-d’água, jogavam petróleo em alagados e removiam os doentes para os hospitais de isolamento.
A população, a princípio, achou aquilo curioso. Mas, incitada por senhorios que haviam perdido seus imóveis de aluguel, políticos demagogos e imprensa, iniciou uma série de protestos violentos por toda a cidade, que ficaram conhecidos como A Revolta da Vacina.
O saldo da revolta – que durou dez dias e provocou a decretação do estado de sítio e uma dura repressão – foram mais de 30 mortos, dezenas de feridos, mais de mil presos e quase 500 deportados para o longínquo Acre. Entre os militares revoltosos, que depois foram anistiados, estavam Eurico Gaspar Dutra, presidente da República de 1946 a 1950; João Mendonça de Lima, ministro de Viação no Estado Novo; Júlio Caetano Horta Barbosa, futuro líder da campanha “O petróleo é nosso”; Euclides de Oliveira Figueiredo, pai do futuro presidente general João Baptista Figueiredo (1979-1985) e Dilermando Cândido de Assis, que viria a ser amante da mulher do escritor Euclides da Cunha.
Quanto ao trabalho de Oswaldo Cruz, o balanço foi positivo. No ano seguinte ao início da campanha, o número de mortes pela febre amarela caiu de 584 para 48, e, em 1907, a doença estava erradicada na capital. Para combater a peste bubônica, Oswaldo Cruz lançou uma campanha de desratização – 50 mil ratos foram mortos –, e a cidade ficou livre da doença já em 1904. O combate à varíola foi mais difícil, pois dependia da vacinação obrigatória. A doença só desapareceu no país, por completo, em 1971, mas a campanha de vacinação reduziu em muito as mortes que ocorriam todos os anos.
Odiado durante as campanhas de combate às epidemias, Oswaldo Cruz teve seu trabalho reconhecido e tornou-se herói nacional, conquistando prêmios no exterior pelos relevantes serviços prestados.
Em 1907, o cientista mudou-se com a família da rua Voluntários da Pátria para um palacete na Praia de Botafogo 406, construído por Luiz Moraes Júnior, o mesmo engenheiro-arquiteto responsável pelo projeto do Instituto de Soroterapia de Manguinhos. Lá havia um laboratório para o cientista continuar seus estudos. Anos mais tarde, com o agravamento da doença renal que o acometia, Oswaldo Cruz mudou-se para a casa da família em Petrópolis, onde morreu no dia 11 de fevereiro de 1917, aos 44 anos. Rodrigues Alves, eleito novamente presidente da República em 1918, não chegou a tomar posse. Contraiu a gripe espanhola e morreu no dia 16 de janeiro de 1919. A nova epidemia seria combatida pelos discípulos de Oswaldo Cruz.