Drummond carioca
Muito se tem falado do Drummond poeta, autor dos maiores clássicos da poesia nacional, como o E agora, José e o No meio do caminho, desde os anos de 1930.
Mas pouco se falou da prosa desse poeta – o que é urgente agora – 30 anos após sua morte.
As histórias contidas nas crônicas drummondianas passeiam por vários cenários da cidade do Rio de janeiro, lugar do qual o poeta – embora mineiro – conhecia variados caminhos e desvãos.
Um dos personagens mais efetivos do Drummond cronista, por exemplo – que poderia inclusive ser definido como espécie de alter ego da personalidade lírica do Drummond poeta –, é morador de cobiçada e decadente casa em Botafogo. Em Caminhos de João Brandão, conjunto de crônicas escritas ali por volta de 1967-1968, esse ‘animal incômodo’ que intitula as crônicas vai fazer sua estreia. E, em Fala, amendoeira protagonizará bizarro e kafkiano episódio em que ratos enormes infestam e dominam seu casarão:
“João Brandão, morador em Botafogo, não pretendendo incomodar (…) órgão federal, dispôs-se a dar caça direta aos murídeos que lhe infestam o domicílio — uma casa meio antiga, que desperta a gula dos especuladores de imóveis.”
É nesse local onde nosso personagem dedicará seu tempo a perseguir e matar ratos:
“Os ratos passaram-lhe entre as pernas, e João quase fraturou uma, pois já lhe faltam o viço e maleabilidade da juventude. (…) Escapou de ser ferrado na panturrilha por um ratão mais assustador do que assustado, e a agressão só não se consumou porque agressor e agredido, afinal, fugiram desabaladamente um do outro.”
Há uma metáfora extremamente irônica que permeia a ideia dos ratos carcomendo patrimônios. Bem atual, não por acaso, no país das ratazanas:
“Falhou também a tentativa original de atrair os bichos para o fogão, ligar o gás e torrá-los. O gás anda fraquíssimo.”
E a resignação sobrepõe-se às utópicas e fracassadas tentativas:
“João verificou que não há remédio nem jeito contra rato (…) Dentro de cada nação, porém, e no estado atual dos conhecimentos humanos, a eliminação dos ratos é utópica.”
A lembrança da morte de Drummond pode não passar de simples efeméride no relicário da memória, porém o que não se pode é lembrar como algo corriqueiro a ideia de roedores que promovem a decadência de um bairro e de um país inteiro.
Ainda que se tenha de com ratos conviver – e tolerá-los por imposição do momento –, assim como um João Brandão qualquer, a vingança é deixá-los roer na paz, até que roam a si mesmos:
“(…) não digo a estimá-los, mas a aceitá-los, o que é quase compreendê-los. (…)São escarninhos e vingativos, mas, deixados em paz, roem em paz.”