O historiador caboclo de Botafogo
Foi preciso um nordestino de origem humilde para o povo entrar na história do Brasil. Antes de o cearense João Capistrano Honório de Abreu aparecer, a população não passava de coadjuvante nos belos quadros de batalhas de Victor Meirelles e Pedro Américo. Assim mesmo, tratavam-se das gentes do litoral. O Brasil desconhecia o Brasil dos sertões. Pelo menos até Capistrano de Abreu, morador do bairro, revolucionar a história do Brasil, que, antes de seu trabalho pioneiro, era uma história sem povo.
Capistrano de Abreu iniciou suas pesquisas por um episódio da história que considerou um marco: as batalhas para expulsão dos holandeses do Nordeste do Brasil.
“Venceu o espírito nacional. Reinóis como Francisco Barreto, ilhéus como Vieira, mazombos como André Vidal, índios como Camarão, negros como Henrique Dias, mamalucos, mulatos caribocas, mestiços de todos os matizes combateram unânimes pela liberdade divina. Sob a pressão externa operou-se uma solda, superficial, imperfeita, mas um princípio de solda, entre os diversos elementos étnicos.”
A originalidade do trabalho de Capistrano de Abreu residia na abordagem engajada. “A mim me preocupa o povo, durante três séculos capado e recapado, sangrado e ressangrado”, dizia. Por essa visão brasileira e popular – ainda não havia o termo “populista” –, foi apelidado de “historiador caboclo”.
Ele fazia parte da geração que lutou contra a escravidão e pela República. Para Capistrano de Abreu, a história era, ao mesmo tempo, gênero literário e ciência. Em suas pesquisas, ele utilizava conceitos em voga no seu tempo: positivismo, evolucionismo, determinismo geográfico e sociologia.
Capistrano trouxe a pesquisa empírica para o primeiro plano. Segundo a historiadora Alice Canabrava, ele se interessou “pelo povo propriamente dito, os segmentos populacionais que trabalham a terra, os que labutam nas tarefas artesanais ou nos afazeres do comércio”. Assim, a reconstrução histórica deixou de focar apenas nas grandes figuras da história e passou a incluir aqueles que Capistrano chamava de “povo comum”.
Entre centenas de trabalhos de Capistrano de Abreu publicados, destacam-se as obras Caminhos antigos e povoamento do Brasil (1899), em que o pesquisador investigou o esforço de conquista do território e seu povoamento; O descobrimento do Brasil (1883), em que discute as pretensões estrangeiras sobre o território nacional e disserta sobre seus temas preferidos – o litoral, o sertão, o povoamento e a população –; e Capítulos da História Colonial (1907), obra que o historiador Nelson Werneck Sodré (1911-1999) considerou essencial.
Euclides da Cunha – autor de Os sertões, obra jornalístico-literária fundamental – foi fortemente influenciado pelo trabalho de Capistrano, assim como foram Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala), Darcy Ribeiro (O povo brasileiro), Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) e Nelson Werneck Sodré (Formação histórica do Brasil).
Capistrano, que estudou línguas indígenas para melhor compreender a geografia do país, percebeu – como ninguém de seu tempo – os contrastes entre o litoral e o sertão. Ele notou a importância do estudo do povoamento e da valorização da mestiçagem étnica e cultural. O grande mérito do Historiador Caboclo está na interpretação que só alguém com grande formação humanista poderia oferecer.
Avesso a badalações, Capistrano recusou o convite para fazer parte da Academia Brasileira de Letras. Passou os últimos meses de vida recluso no porão de sua casa, na antiga travessa Honorina 45, cercado de livros por todos os lados, até morrer em agosto de 1927.
A travessa Honorina virou rua Capistrano de Abreu em justa homenagem ao humanista, cujo trabalho é ainda mais importante nos tempos sombrios em que vivemos.