Trem doido

Trem doido

O poeta Murilo Mendes é protagonista de episódios bizarros. Não à toa é o maior poeta do surrealismo nacional.

Dentre suas várias bizarrices, constam dois fatos que lhe marcaram a infância: um foi a vista alucinante do cometa de Halley, lá pelos idos de 1910; e o outro, sua épica fuga do colégio interno, para assistir às apresentações do bailarino russo Nijinski, no Rio de Janeiro. Corria o ano de 1917.

Esses episódios – segundo o próprio Murilo – mudariam para sempre sua visão poética, e de mundo.

Logo no início dos anos de 1920, o poeta viria definitivamente para o Rio, morar numa pensão em Botafogo. A partir de então, Murilo Mendes manteria uma relação muito forte – e surreal – com o bairro.

Foi em Botafogo que, devido a dificuldades financeiras e ao desemprego, o poeta – faminto, mas certamente embebido da musicalidade surrealista – afirmara ter “visto” Mozart em seu quarto de pensão, ao cair da madrugada. Bem ali, na rua Farani.

Fanático pelo compositor austríaco, Murilo – irado – enviara um telegrama a Hitler. E o próprio poeta mais tarde revelaria o teor de sua indignação:

Apenas recebida a notícia da ocupação de Salzburgo pelas tropas nazistas, expedi a Hitler o seguinte despacho:

‘EM NOME MOZART PROTESTO CONTRA INVASÃO MILITAR SALZBURGO. MURILO MENDES’

Hilário?

Avolumava-se, assim, o acervo de lendas que circundavam o poeta. Consta que, às custas de grave pneumonia, fora convalescer em inusitado albergue de velha senhora russa que vivia num antigo casarão de Botafogo. O charme da pacata albergueira – e que encantava o poeta – residia no fato de a mesma afirmar já ter hospedado também o grande escritor Tolstoi. Em dias antigos. Lá na Rússia.

Surreal?

Já morando na Praia de Botafogo, 400 – seu último endereço no Brasil –, o autor mineiro, envelhecido e pouco antes de morrer, ainda homenagearia em poemas a paisagem local.

Como no melancólico Mapa:

Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre
em transformação.

Ou também neste estranho Idílio Unilateral:

Praia de Botafogo,
acácias e colunas dóricas falsificadas.
O meu namoro no ponto mais complicado da praia
é um pretexto para vir no jornal,
seção de atropelamentos (…)
Ó saxofones do último dia
soprando a música do aniquilamento.

Ah, diz que constava de sua vastíssima biblioteca, ali mesmo, na Praia de Botafogo, um exemplar do clássico Portraits-souvenir, com a seguinte dedicatória:

“à Murilo Mendes, avec l’amitié de Jean Cocteau”.

Bizarro, não é mesmo?

Lucio Valentim