O crime da Praia de Botafogo

O crime da Praia de Botafogo

Na noite do dia 4 de junho de 1843, o rico e influente empresário Felipe Nery Carvalho – fundador e primeiro presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro – foi esfaqueado e morto ao chegar à chácara de sua propriedade, na Praia de Botafogo, após assistir a uma peça de teatro com a família. O assassino – o gaúcho Camilo, um de seus escravos, de apenas 20 anos – alegou, como motivo do crime, as torturas promovidas pelo feitor. Após um julgamento rumoroso, no dia 11 de agosto do mesmo ano Camilo foi enforcado no Campo de Santana, no centro da cidade.

Se você acha que a Praia de Botafogo é um lugar perigoso para se caminhar, especialmente à noite, é possível que tenha razão. Mas, em meados do século 19, as coisas eram muito piores na visão dos cronistas da época:

“(…) coisa perigosa aventurar-se alguém àquelas paragens fora de horas. O lugar, sem iluminação, passa por valhacouto de ladrões, malfeitores e desocupados (…)”

Mas o comendador Felipe Nery Carvalho não se preocupava com isso. Aos sábados, ele costumava seguir de carruagem para o descanso dominical no sítio de Botafogo, em companhia da esposa Dona Luiza e de seus dois filhos, Nuno e Felipe. No caminho, tinham o hábito de assistir a uma peça de teatro, como naquele dia 4 de junho chuvoso. Após o teatro, a família, acompanhada de dois escravos, foi para a casa de carruagem. Ao chegarem em frente ao portão da chácara, o próprio Felipe Nery se encarregou de abrir a cancela. Quando se aproximaram da cocheira, o comendador pressentiu a presença de alguém e perguntou:

“— Quem está aí? Ouviram-se pisadas duras a correr, e Felipe gritou: — Peguem esse malvado! Tombou no chão enlameado. Nuno debruçou-se sobre o pai, que ainda pôde balbuciar: — Mataram-me.”

Desesperação

Não demorou muito para encontrarem o assassino. Era Camilo, escravo de Felipe Nery. Na delegacia, ele confessou o crime. Disse que o fez por “ódio ao capataz”. Indagado se o senhor Nery lhe batia, respondeu que não, mas que “de nada adiantaria matar o capataz porque viria outro feitor igual. A solução era matar o senhor”. A coragem e a clareza de raciocínio de Camilo desnortearam o juiz Sebastião Machado Nunes, que suspeitou de um crime por encomenda:

— Quem planejou o crime?

Ao que Camilo respondeu: — Eu! Eu! Sozinho!

— Quem foi o mandante?

— O mandante foi a minha desesperação!

Camilo – que, antes de Felipe Nery, havia sido de quatro outros senhores – não era do tipo que se conformava:

“De uma vez em que o feitor lhe metera o relho – se você se lembrou da senadora gaúcha Ana Amélia, meus parabéns –, berrou-lhe, espumante de indignação, que não o consentiria uma segunda vez!”

Às autoridades, Camilo teria se queixado de que era “o único indivíduo que trabalhava todos os feriados, todos os dias santos, todos os domingos, sem licença para um pouco de diversão”.

“Puro mimimi”, diriam alguns, tivesse o caso ocorrido nos dias de hoje.

No dia seguinte, o Rio estava em polvorosa, e não se falava em outra coisa. Felipe Nery era um dos figurões da cidade. Empreendedor nacionalista, ele havia sido um dos fundadores da Associação Comercial do Rio de Janeiro – então Sociedade dos Assinantes da Praça do Rio de Janeiro – e seu presidente durante os primeiros seis anos. Lutou pela construção do Edifício da Praça do Comércio – onde hoje fica a Casa França-Brasil –, do mercado e do Banco Comercial. Comerciante e grande proprietário na Corte – com imóveis em Santa Teresa, na Praia Grande, em Botafogo, na Prainha e no Centro –, Felipe Nery era também proprietário de muitos escravos. O poder e a riqueza acumulados lhe conferiram muitas honrarias e títulos. Foi comendador, coronel-chefe da 3ª Legião de Cavalaria da Guarda Nacional e vereador. Na Câmara Municipal, coube a ele puxar os vivas ao Imperador Dom Pedro II durante a assembleia que reformou a Constituição:

“Viva a Lei das reformas constitucionais! Viva a Assembleia Geral Legislativa! Viva o Imperador Constitucional, Senhor D. Pedro II! Viva a união do Povo Brasileiro! Viva a Câmara dos Senhores Deputados!”

Últimos dias de Camilo

Uma lei imperial de 1835 punia com a morte qualquer escravo que matasse seus senhores, portanto, a sorte de Camilo estava selada. No dia 17 de julho, após cerca de nove horas de debates intensos, ele foi condenado à morte por enforcamento.

Num esforço de reportagem, o Jornal do Commércio conseguiu narrar os últimos dias de Camilo por meio de um diário escrito por seu carcereiro:

“O preto Camilo, depois que respondeu ao júri, tem estado solitário, e com sentinela à vista; conserva o semblante calmo, e tem bom apetite. Mesmo durante o dia, leva muitas horas deitado, à vezes em sono profundo”.

Outra anotação, da véspera da execução:

“Dia 10 de agosto – às 7h30, apresentou-se o senhor chefe da Polícia. Em seguida, apresentaram-se o escrivão das execuções, o promotor público, um escrivão do interrogatório e dois religiosos. Às 8h30, foi-lhe lida a sentença. Às 10h30, foi recolhido à sala do oratório e ali, algemado. Estranhou que não lhe concedessem ao menos 24 horas. Confessou-se aos dois religiosos de Santo Antonio. Mais tarde, comeu um pouco de peixe e bebeu um copo de vinho. Passou grande parte da noite segurando e conservando junto ao peito uma imagem de Cristo.”

E a última anotação:

“Dia 11 de agosto – às 7h, esteve com seu confessor a quem disse desejar levar para o patíbulo uma imagem de São José e outra de (Nossa Senhora da) Conceição. Às 8h20, foi servido o almoço. Às 8h30, chegou o oficial de justiça. Às 9h15, as forças de cavalaria e infantaria: pela cavalaria, um oficial, um inferior e nove soldados; pela infantaria, um oficial, um inferior, um cabo e 16 soldados. Às 10h, foi entregue a uma escolta de pedestres da polícia. Às 10h15, chegou a Irmandade da Misericórdia. O réu conversou com seu confessor por mais 20 minutos e pediu um cigarro que pouco fumou. Marchou com passo firme pela rua São Pedro até o Campo de Santana, onde foi executado meia-hora depois do meio-dia. Não consentiu que lhe atassem os olhos.” Talvez devêssemos, a exemplo de Camilo, manter os olhos bem abertos para entender que nossa sociedade não é tão diferente assim daquela de meados do século 19, em que o poder era exercido por uma casta autoindulgente e, ao mesmo tempo, inclemente com escravos e miseráveis “no desvio”. Enquanto não admitirmos essa herança maldita e pensarmos em formas de reparação, histórias como as de Camilo vão se repetir e nos assombrar a cada novo dia.

Antonio Augusto Brito