Folhetim

Folhetim

A grande ficção nacional é filha do folhetim. É assim desde o século XIX, tempo em que teve início a proliferação deste tipo de publicação diária e periódica, à época veiculada na imprensa escrita, ora de teor histórico, ora contemporâneo, assim como no século XX faria a TV, mediante a ficção cotidiana das telenovelas.

Com tramas repletas de mirabolâncias, de idas e vindas, de infortúnios e mistérios, amores e ardis, o folhetim fazia refletir o imaginário coletivo daquela tacanha e provinciana metrópole tropical – embora sempre metida à besta.

Era o tempo dos dotes e das heranças, da falsidade e das rutilâncias. Aliás, como nunca por aqui deixara de ser.

Eis um caso folhetinesco. Este que segue em relato.

Consta que um velho Conselheiro, ao morrer, firmara impactante testamento. O fato é que, mais do que os bens materiais a serem generosamente distribuídos entre o único filho e a velha solteirona irmã, agregada na casa, havia no documento a bombástica revelação de que o respeitável homem tinha uma filha bastarda, já adolescente, e que vivia interna em um colégio no bairro de Botafogo.

E, mais do que a vasta verba testamentária – e os bens – aconselhava o Conselheiro textualmente que a moça deveria dividir com a família também a chácara em que filho e tia cinquentona viviam tranquila e fartamente os hábitos burgueses do tempo.

Eis aí enredo luxuoso para folhetim de alto poder de impacto.

A nova filha era uma intrusa, sem nenhum direito ao amor dos parentes; quando muito, concordaria em que se lhe devia dar o quinhão da herança e deixá-la à porta.

Essa linda e emergente menina, de enclausurada em internato de Botafogo, passa a pivô de ardentes cenas de ciúmes, incestos, adultérios etc, tudo no espaço livre da enorme chácara que, de repente, é sua, de herança.

Recebê-la, porém, no seio da família e de seus castos afetos, legitimá-la aos olhos da sociedade, como ela estava aos da lei, não o entendia (…), nem lhe parecia que alguém pudesse entendê-lo.

Embora dominatrix da chácara – mas por ter vivido toda a vida no bairro –, a maioria das cenas da moça ocorre mesmo em Botafogo, que é onde se dá, aliás, o momento de revelação do seu verdadeiro pai, pobre, que, em disfarce, é flagrado buscando emprego no tal colégio, na intenção de reaproximar-se da filha etc.

Resulta que a falsa paternidade do Conselheiro, dentre várias reviravoltas, acabava por legitimar o amor entre os considerados irmãos, afastando a suposição do incesto, abrindo com isso precedente enorme para outras peripécias folhetinescas.

Ah, claro que, fosse hoje, nada que um DNA não resolvesse.

Mas corria o ano de 1876.

Aconselho.

Lucio Valentim