Tudo velho de novo
Justo quando se pretendia – ao longo dessas duas primeiras décadas do século – que direita e esquerda fossem etiquetas ultrapassadas, ressurge a famigerada extrema-direita. E o fenômeno é global. É bem verdade que essa nova geração de aloprados nada sabe, p. ex., de supremacistas, de nazistas, de passados integralistas etc. Tampouco sabe sob que critérios todos foram para essas legendas tangidos.
É justamente pelo desconhecimento da história que se tende a repeti-la. Pelo avesso. Contudo, não nos enganemos: é nessa ignorância que reside o perigo.
Conforme hoje nos fartamos de ver, fatos e comportamentos sinistros logo tendem a retornar. Ainda que farsescamente.
Resquícios graves, como o extermínio sistemático de pessoas, se perpetuaram nas democracias atuais, porém, como estão exclusivisados à pobreza das periferias, assustam menos os ditos cidadãos “de bem”.
Houve um tempo entre nós em que a política da morte passou a incomodar – e apavorar – às elites e classes médias urbanas. Foi quando o futuro do futuro arquiteto, do futuro engenheiro, do futuro doutor se viu ameaçado: caçado, preso, torturado e morto.
O episódio do jovem alvejado num restaurante universitário no centro do Rio serviu de estopim na cabeça das “pessoas da sala de jantar” que viviam mais defronte ao mar da cidade. Caía enfim a ficha:
Nas duas horas em que percorre o trajeto entre o centro da antiga capital e o bairro de Botafogo, o cortejo recebe uma chuva de pétalas de rosas e papel picado lançados do alto dos edifícios. A palavra de ordem repetida em uníssono pela multidão alerta: Mataram um estudante. Podia ser seu filho!
“Pedro e os lobos: os anos de chumbo na trajetória de um guerrilheiro urbano”, de João Roberto Laque, nos remete à última experiência que tivemos com a truculência extremista de direita:
A gente, através do partido, tentava viabilizar as mudanças, fazer pressão junto aos deputados, mas a ultradireita sabotava tudo espalhando que os comunistas queriam tomar as pequenas propriedades e a casa do trabalhador.
Por isso, por vezes, se fez necessário reagir à altura:
Às duas e meia da tarde da quarta-feira, 4 de setembro de 69, o grupo de dez combatentes da coligação DI-GB/ALN está a postos no bairro de Botafogo. Cinco minutos depois, surge na rua Marques o Cadillac negro (…)
Ainda que já soasse meio anacrônica a narrativa do anticomunismo à época, a caça a cidadãos comuns, contrários às ideias oficiais, tornou-se implacável, por meio de milícias patrocinadas por pessoas também comuns. Muitas vezes, o próprio vizinho:
Para fazer frente ao pipocar das siglas dispostas a enfrentar o regime a bombas e à bala, a ultradireita se aglutina em organizações paramilitares como o Movimento Anticomunista, a Frente Anticomunista, e o mais ativo de todos, o Comando de Caça aos Comunistas.
O atentado à OAB, que resulta na brutal morte da secretária da Ordem, é sadicamente comemorado pelos extremistas, pelas ruas do bairro:
A ação dos grupos de ultradireita causa uma grande indignação popular. Durante o enterro de Lydia, oito mil pessoas desfilam pelas ruas, (…) no bairro de Botafogo, entoando o Hino Nacional e slogans de protestos. O cheiro de pólvora dos linhas-duras, entretanto, não provocará qualquer reação armada nas esquerdas e o processo de abertura política segue seu curso.
Conforme advertiam os antigos, em termos de democracia, nada está para sempre garantido.