Viveria a deusa numa rua de Botafogo?

Viveria a deusa numa rua de Botafogo?

Nosso bairro vem inspirando poetas e compositores desde muito antes dos bambas Paulinho da Viola e Mauro Duarte. Entre 1930 e 1945, o compositor e jornalista Jorge Faraj, nascido e criado em Botafogo, fez parte de um seleto grupo de compositores da era de ouro do rádio, época em que a música brasileira ganhou popularidade. Faraj deu letra a diversas canções – sambas, marchinhas e valsas – eternizadas nas vozes de alguns dos maiores cantores de seu tempo. E além dele.

Filho de libaneses donos de um armarinho no bairro, Jorge Vidal Faraj nunca se interessou pelo comércio. Desde cedo, descobriu sua vocação para as letras. Em 1919, aos 18 anos, fundou, com amigos do bairro, o jornal O Botafogo, em que publicou suas primeiras poesias. Embora nunca tenha abandonado o jornalismo, que pagava as contas, foi como letrista de músicas populares que ele ganhou notoriedade ao lado de grandes talentos, como Dorival Caymmi, Herivelto Martins, Lupicínio Rodrigues, Mário Lago, Ataulfo Alves e David Nasser.

As primeiras parcerias musicais de Jorge Faraj foram com o flautista, maestro e compositor Benedito Lacerda, que ele conheceu, em 1934, num café no centro do Rio. No ano seguinte, os dois compuseram “Ísis”, “Telefone do amor” e “Rainha sem trono”. Dali em diante, Jorge Faraj não parou mais. Compôs com dezenas de parceiros canções gravadas por alguns dos maiores intérpretes da época, como Nuno Roland, Aracy de Almeida, Mário Reis, Dircinha Batista, Nelson Gonçalves e os chamados “Quatro Grandes”: Orlando Silva, Francisco Alves, Carlos Galhardo e Silvio Caldas.

Deusa da minha rua

E foi na voz de Silvio Caldas – o Seresteiro do Brasil – que Jorge Faraj se consagrou com a obra-prima “Deusa da minha rua”, uma valsa romântica, em parceria com Newton Teixeira. A composição foi regravada, mais tarde, por outros grandes intérpretes, como Miltinho, Nelson Gonçalves, Jessé, Carlos José, Agnaldo Timóteo, Cauby Peixoto e Roberto Carlos. A versão do Rei fez parte da trilha sonora da novela “Éramos seis”, da TV Globo, de 2020.

A canção fala de um amor impossível, em que a mulher é adorada a distância, ignorando ser objeto de uma paixão. A poesia de Faraj estabelece o contraste entre a beleza da “deusa” e a miséria das ruas, e compara a poça d’água – que “transporta o céu para o chão” – aos próprios olhos, “espelhos de sua mágoa”.

Quase tão impossível quanto o amor platônico do poeta foi gravar a música, processo que levou três longos anos. Inicialmente, Faraj não aprovou a primeira melodia sugerida por Newton Teixeira. Depois foi o cantor Silvio Caldas que fez pouco caso da canção e fugiu das investidas do parceiro de Faraj.  “Até que um dia – disse Newton Teixeira ao pesquisador Lauro Gomes de Araújo –, perdendo a paciência, tive que tirar o Sílvio de uma roda no Nice* e praticamente arrastá-lo ao estúdio”.

Valeu a espera. Se a deusa era inatingível, a poesia de Faraj é eterna.


Deusa da minha rua (Newton Teixeira / Jorge Faraj)

A deusa da minha rua
Tem os olhos onde a lua
Costuma se embriagar
Nos seus olhos, eu suponho
Que o sol num doirado sonho
Vai claridade buscar

Minha rua é sem graça
Mas quando por ela passa
Seu vulto que me seduz
A ruazinha modesta
É uma paisagem de festa
É uma cascata de luz

Na rua, uma poça d’água
Espelho da minha mágoa
Transporta o céu para o chão
Tal qual o chão da minha vida
A minh’alma comovida
O meu pobre coração

Espelho da minha mágoa
Meus olhos são poças d’água
Sonhando com seu olhar
Ela é tão rica e eu tão pobre
Eu sou plebeu e ela é nobre
Não vale a pena sonhar

* O Café Nice foi um café e bar da cidade do Rio de Janeiro que, na primeira metade do século XX, reunia a boemia carioca e foi palco de muitos acontecimentos no meio artístico. Ficava na Avenida Rio Branco, número 174.


Fontes

SEVERIANO, Jairo; HOMEM DE MELLO, Zuza A canção no tempo – 85 anos de músicas brasileiras vol. 1: 1901-1957. São Paulo. Editora 34, 1997

Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB)

https://immub.org/busca?album=&musica=deusa+da+minha+rua&interprete_1=&interprete_2=&compositor_1=Newton+Teixeira&compositor_2=Jorge+Faraj&gravadora=&ano=&tipo_midia

Antonio Augusto Brito